LINGUÍSTICA


RELATIONS BETWEEN SUBJECT, PREDICATE, AND OBJECT IN THE GREEK MEDIUM VOICE - RELAÇÕES SUJEITO-PREDICADO-OBJETO NA VOZ MÉDIA



* Este artigo foi apresentado originalmente no VIII CELSUL - CÍRCULO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO SUL - realizado na UFRGS - em Porto Alegre, de 29 a 31 de outubro de 2008 e publicado nos anais do mesmo congresso.



AS RELAÇÕES SUJEITO–PREDICADO–OBJETO NA VOZ MÉDIA
Relations between subject, predicate and object in the Greek medium voice,
Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara, e Profª. MSc. Rossana Dutra Tasso


Resumo. O objetivo deste trabalho é, ao mesmo tempo, analisar as relações enunciativas entre sujeito, predicado e objeto na voz média grega e Demonstrar a presença dessa voz na língua portuguesa. Não tem, a voz média, Um correspondente formal em nossa língua, como, de modo geral, não o tem Nas línguas modernas. É expressa perifrasticamente, mais comumente com um Verbo na voz ativa e um pronome reflexivo. Em português, “curar a doença” e “curar-se da doença” seriam exemplos respectivamente da voz ativa e da voz média. Na voz média, o processo verbal tem efeito sobre o sujeito, porém vai além da reflexiva portuguesa. O que caracteriza o médio é o fato de ele definir o sujeito como interior ao processo, junto com o objeto.
Palavras-chave: voz média; voz ativa; sujeito; enunciação. 


Abstract. The goal of this assignment is, at the same time, to analyze the Enunciatively relations between subject, predicate and object in the Greek medium voice, and to demonstrate its presence in the Portuguese language. The medium voice does not have a formal correspondent in our language, just like, in a general way, in any modern language. It is periphrastically expressed, more commonly with an active voice verb and a reflexive pronoun. In Portuguese, “to heal from the sickness” and to “to heal oneself from the sickness” would be respectively examples of both active and medium voice. In the medium voice, the verbal process has effect over the subject; however it goes beyond the reflexive from the Portuguese language. What characterizes the medium voice is the fact that it defines the subject as a being inside the process, together with the object.


1.Introdução
Poucos são os estudiosos da linguagem hoje que se dedicam ao estudo da voz média. Mesmo os que se debruçam sobre a gramática da língua grega clássica, quando abordam O tema, geralmente permanecem no nível morfológico-sintático. Porém, depois que os filósofos e, de modo especial, os psicanalistas dedicaram muitos estudos ao assunto, passa-se a dar-lhe maior importância.
Este estudo tem por finalidade abordar as elações sujeito–predicado–objeto a partir das relações sintáticas de voz média. Para tanto, julgamos necessário retomar os conceitos fundamentais aqui implicados, bem como, pelo menos de modo superficial, as bases filosóficas que fundamentam as concepções inerentes a este tema.
2. As origens da voz média
As vozes, ativa e passiva, sob o nome de ação e paixão, já ao mencionadas no Órganon de Aristóteles, no livro das Categorias (Kathgori/ai), azendo parte as dez categorias fundamentais propostas pelo filósofo clássico – assim discriminadas, em português e, nos parênteses, em grego e latim, respectivamente: substância (οὐσία, substantia), quantidade (ποσόν, quantitas), qualidade (ποιόν, qualitas), relação (πρός τι, relatio), lugar (τοποs, ubi), tempo (ποτέ, quando), estado (κεῖσθαι, situs), hábito (ἔχειν, habere), ação (ποιεῖν, actio) e paixão (πάσχειν, passio). Algumas vezes, essas categorias são também chamadas de classes.
O nosso termo ação provém do verbo latino ago (ago, egi, actum, agere), que significa conduzir, levar, coagir, fazer, agir, etc. Do tempo supino actum, originou-se o termo ato e seu correlato ação. Daí surge a relação ativa entre o verbo e o sujeito. Aparece a manifestação e o conceito de sujeito com dupla significação: o sujeito sintático, regendo o predicado, e o sujeito empírico, agindo sobre o mundo e sobre o outro. Nessa voz, o sujeito empírico assume a consciência de sua ação sobre o mundo.
O termo passivo/a provém do verbo atino patior (patior, passus sum, pati), que significa sofrer, suportar, tolerar, admitir. Desse verbo originaram-se os termos paixão e passivo. Dele deriva-se a concepção de voz passiva, em que o sujeito suporta, sofre a ação verbal. Por outro lado, nesta voz aparece a manifestação da ação do mundo ou do outro sobre o sujeito sintático: aparece a consciência da ação do mundo ou do outro sobre o indivíduo, sujeito empírico.
Essa voz, a passiva, no entanto, tem surgimento posterior na maioria das línguas. Em se tratando das línguas do Oriente, essa voz somente surgiu após contatos mais efetivos com as línguas ocidentais, como se pode constatar pela citação abaixo:
Curiosamente, a voz passiva é tardia. Se comparamos com o caso De línguas como o chinês, vemos que a voz passiva é inexistente e só foi Adotada – muito tardiamente, digamos, nos sécs. XVIII e XIX – por contatos com o Ocidente (SPROVIERO, 1997, p.2).


No processo de recuperação do conceito de voz média, há estudiosos que afirmam hoje que, no surgimento da linguagem humana, ela foi a voz original (que dá origem às demais), e fundamentam seus postulados nos estudos e análises do surgimento da linguagem na criança, realizados pela Psicologia Experimental. A criança inicia sua inserção no uso da linguagem não se distinguindo do mundo que a cerca: nem dos objetos, nem dos outros seres humanos. A voz característica dessa fase da aquisição da linguagem seria a voz média.
Essa voz era a fundamental nos primórdios do surgimento da linguagem no homem. Na infância da humanidade, o homem não tinha ainda consciência de si e do universo como ontologicamente distintos. Nesse sentido, sobre a voz média, Sproviero afirma:
E o ponto fundamental é a tese desenvolvida pelo pensador alemão Schöfer. Ele é de opinião de que houve uma fase em que havia somente o médio: ativo e passivo seriam análises do médio. O médio indicaria portanto a fase da consciência não destacada do mundo, isto é, o homem e o mundo não se separavam, integravam o mesmo todo e a linguagem exprimia essa relação integral (Idem, ibidem, 1997, p.3).


O termo análise provém da palavra grega lu/siv, cujo significado é solução, dissolução, ação de dissolver, desatar etc. Essa etimologia presta-se para o entendimento do termo análise, empregado por Sproviero na citação acima. Assim, o termo médio ter-se-ia dissolvido, analisado em ativo, passivo e médio no sânscrito e no Grego clássico.
Dessa forma, o conceito de voz média está relacionado com a própria evolução do homem e ligado à própria formação da consciência do indivíduo acerca de si próprio, do mundo que o cerca e de suas relações intersubjetivas de alteridade.
Acontece que o desenvolvimento do latim e do sânscrito, por caminhos semelhantes, motivou o apagamento da marca morfológico-sintática de voz média na maioria das línguas naturais em uso atualmente. O sânscrito, por motivos religiosos, e o latim, por motivos político-religiosos, fizeram dessas línguas, línguas artificiais. A Partir da gramática grega de Dionísio (Dionu/siov Qra/c), as gramáticas escritas Não passaram a não corresponder a línguas naturais.
As gramáticas não eram descritivas. A primeira gramática do sânscrito, escrita pelo religioso indiano Panini, não refletia a língua realmente falada pelos usuários do idioma: visava a efeitos sobrenaturais do ritual sagrado e buscava aproximar-se da língua primitiva em que os textos do culto haviam sido redigidos. Essa gramática criou uma língua que passou a ser usada nos templos de toda a Índia por muitos séculos. Tal formalização gramatical serviu e base para a criação das gramáticas escolares desde então usadas nas escolas como instrumento de ensino.
O latim medieval se desenvolveu de modo semelhante. Também ele não foi uma língua falada. Os gramáticos romanos tomaram uma língua artificial criada por influência dos gramáticos gregos clássicos, o latim clássico, promoveram algumas mudanças que o momento exigia, impuseram normas que as fixassem, dogmatizaram seu uso e criaram um vocabulário filosófico. Então, essa língua consagrou-se (do verbo latino sacrare, por sua vez ligado ao substantivo sacer, sacerdos, que significa sacerdote) como veículo de cultura. Assim, todo o texto que não seguisse as normas da gramática, tornada oficial dos estados, não era considerado científico.
As gramáticas escolares foram elaboradas a partir dessas normas e impostas aos alunos que quisessem utilizar a norma culta. Não eram gramáticas descritivas de línguas naturais. É lógico que essa imposição contribuiu para originar as novas línguas naturais, não por seguirem esses parâmetros impostos, mas exatamente por se fundarem em princípios de outra natureza, a das relações sociais naturais.
A gramática clássica grega, assim como a temos hoje, reduz a voz média ou a uma simples reflexiva ou, na melhor das hipóteses, apresenta-a como expressão de uma ação que o sujeito pratica particularmente interessado em seu efeito, ou em seu próprio interesse. Veja-se o seguinte exemplo do verbo tomado primeiramente na voz ativa:αἱρέω (eu tomo). Passado para a voz média, fica: αἱρέοµαι (eu escolho), isto é, tomo de acordo com meu interesse.
Nesse emprego, a voz média perdeu sua dimensão primeira, isto é, a de ser uma marca primordial de indiferenciação do indivíduo com o universo e com a própria divindade que caracterizava os tempos míticos. Aparece apenas como manifestando uma ação verbal em que o sujeito age de acordo com seus próprios interesses.
Há, também, ainda hoje, forte preocupação com a mudança, com o que se chama de “corrupção” ou “perdas” de dimensões da língua. As citações acima foram iradas de uma entrevista feita a Mário Bruno Sproviero, professor de filosofia da USP, sobre um artigo publicado por ele a respeito da linguagem, em que destacara o desaparecimento morfológico-sintático da voz média nas línguas naturais em uso atualmente. Valemo-nos de afirmativas dele e de seu entrevistador para expressarmos nosso ponto de vista sobre o tema.
Afirma o entrevistador:


Antes de tratarmos da voz média e para tomar um caso ligado diretamente às transformações do português realmente falado no Brasil de hoje (sobretudo pelo jovem...), ocorre-me que um dos exemplos mais fortes dessa ligação pensamento/linguagem está acontecendo com o atual processo de supressão (fática) do subjuntivo (ou da distinção subjuntivo/indicativo) O que se ouve é: "Se você quer que eu vou, eu vou...". Parece-me que esta supressão (gramatical) corresponde a uma supressão de distinção de categorias mentais: a abolição da distinção entre o real em ato e o simplesmente possível ou desejado... (Idem, ibidem, 1997, p.1)


Em sua resposta, o entrevistado concorda com o posicionamento do entrevistador, dizendo:


Exatamente. O exemplo é muito bom. E mostra como um empobrecimento de linguagem corresponde a um estreitamento de horizontes mentais. Isto é mais nítido ainda no alemão, cujo subjuntivo é ainda mais detalhado do que o nosso (quanto a modos de possibilidade, desejo etc.) (Idem, ibidem, p.1).


Esses posicionamentos em relação ao uso linguístico estão intimamente relacionados com os de Dionísio Trácio, no século II a. C., em relação à língua grega. Vivendo em Alexandria, portanto ora da Grécia, e num período em que, por força do imperialismo, não mais do estado grego, mas ainda da cultura helênica, não mais no período helênico, mas no período helenístico, o humanista da Trácia elaborou sua gramática.
Ocorre que no período helênico, cujo apogeu se dá no século V a. C., os literatos, mormente os poetas, empregavam uma linguagem altamente rebuscada na produção de suas obras de indiscutível qualidade literária.
Dionísio, vendo a produção literária de seu tempo, o período helenístico, em que a língua e cultura grega se disseminavam por todos os países do Mediterrâneo, encontrando o emprego da língua grega pelos seus contemporâneos arvorados em homens de cultura, ficou extremamente preocupado com as diferenças entre os textos em grego produzidos pelos coetâneos dele e os das obras clássicas da Grécia, produzidos no ápice da cultura dessa nação. Isso o levou a redigir sua gramática, que nada mais é do que um conjunto de regras de escrever, orientadas pelos textos da literatura grega (rotulada hoje de clássica) produzidos no período helênico. Ora, nenhum grego empregava essa linguagem para a comunicação diária, muito menos em seu uso coloquial.
No entanto, a gramática de Dionísio serviu de base para a elaboração das gramáticas latinas e de todas as gramáticas prescritivas que e elaboraram depois de então. Esta breve reflexão servirá de base para nossos posicionamentos neste artigo.
Discordando do ponto de vista de Sproviero e de seu entrevistador, no que se refere à mudança linguística, e fundados na concepção de que gramáticas prescritivas são calcadas em modelos políticos autoritários, fazemos os comentários que se seguem.
As línguas não se regem por normas impostas por quem quer que seja. As regras que orientam suas mudanças são as mesmas que regem as transformações sociais. E nessas transformações linguísticas não há enriquecimento, empobrecimento ou corrupção: surgem termos que têm orientação filosófico-sociológica de outra ordem e natureza, ora ligadas à moral e à religião, ora a interesses menos nobres. E o sujeito passa a conceber a realidade de outra maneira. São diferentes estratégias discursivas eleitas pelos falantes para se manifestarem em seu idioma que se revestem de outra roupagem para expressar um olhar próprio, ao mesmo tempo igual e novo, sobre si mesmos e a realidade que os cerca. Não é nada melhor nem pior: é diferente.
Na mesma direção em relação à mudança, Sproviero comenta ainda o apagamento da marca formal do subjuntivo e, a seguir, da voz média:


Da mesma maneira que, como você dizia, nós estamos, hoje, numa fase de perda do subjuntivo e, com ele, da distinção entre realidade e possibilidade; no caso do grego, as gramáticas foram escritas numa época em que a voz média já não era mais empregada e ela foi objeto de uma teorização que não compreendia o alcance e o sentido dessa voz (Idem, ibidem, p. 3).


Em nosso ponto de vista, não ouve perda nenhuma na ausência a marca de subjuntivo. Não podemos concordar com esse modo de ver. Fato de não empregar uma marca linguística para distinguir realidade e possibilidade não significa que os usuários da língua hoje não a percebam e não sejam capazes de manifestá-la, quer oralmente quer em textos. Trata-se do que concebemos aqui como diferença de estratégia linguística sem determinação qualitativa de melhor ou pior.
Voltando à voz média, seu uso vai desaparecendo, historicamente, entre o século IX a. C., período homérico, auge do seu uso e início do declínio; e o século II a. C., período do gramático Dionísio já citado anteriormente, em que seu emprego se reduz ao que aparece na gramática grega também já mencionado.
O período homérico é pós-guerra de Tróia, que ocorreu no século II a. C., portanto, início do imperialismo grego. Até então, desenvolviam-se as pequenas comunidades das cidades-estado, em que o indivíduo era apenas um cidadão, não se diferenciando dos demais.


O médio é muito mais a consciência da comunidade, uma comunidade da qual o sujeito não se distingue; numa sociedade complexa, a forma média vai se extinguindo numa estrutura cada vez mais complexa e tendendo ao Império (Idem, ibidem, p. 5).


Desse ponto histórico em diante, cada vez mais o indivíduo passou a pertencer menos à comunidade e mais ao universo, ao império:
O que foi a filosofia, senão um esforço constante para consumar a ponte homem-mundo. Tanto é assim que sempre encontramos uma dificuldade de distinguir homem-mundo e, na dimensão epistemológica, a distinção sujeito/objeto, não excluímos do objeto o próprio eu do sujeito, que está presente em todos os atos do conhecimento: eu me conheço ao conhecer... Já o eu, enquanto sujeito ontológico, se distingue do mundo...(Idem, ibidem, p. 5).


A partir do desaparecimento desse elo homem–mundo expresso por marcas linguísticas, o ser humano, com muitos pensadores, buscou essa ponte. É o caso de Kant em Crítica da Razão Prática. Já Sidarta Gautama, Buda, no século VI a..C., buscavam a ligação entre o mundo mítico e a nova realidade.
Essa marca de relação sujeito–objeto na ação, segundo algumas correntes da psicologia, desapareceu como uma forma fixa, morfológica, na linguagem, mas permanece no inconsciente e se manifesta na enunciação.
3. Os estudos de Benvensite sobre a voz média
A contribuição dos estudos enunciativos acerca da voz medial vem através de Émile Benveniste. Em Problemas de Linguística Geral, tomo I, há um capítulo intitulado Ativo e médio no verbo, datado de 1950, no qual o autor examina a particularidade da distinção entre voz ativa e voz medial nas línguas indo-europeias, valendo-se do conceito de diátese:


Toda forma verbal finita pertence necessariamente a uma ou outra diátese, e mesmo certas formas nominais do verbo (infinitos, particípios) igualmente se submetem. Equivale a dizer que tempo, modo, pessoa, número têm uma expressão diferente no ativo e no médio (BENVENISTE, 1976, p.184).


O conceito de diátese não aparece explicitamente definido por Benveniste. No entanto, é possível inferir, por aproximação ao campo a Medicina, que o termo diátese é empregado para referir-se a uma predisposição, uma característica imanente dos verbos, que os faz selecionar argumentos de tal forma que, no caso específico da voz média, veicule-se a informação de que o agente verbal efetua algo se afetando direta e concomitantemente. Assim, tem-se como exemplo nascer, verbo cujo significado vai além do espectro ativo: nascer é, para o sujeito, passar a integrar o mundo e interagir com ele; ainda que, em uma primeira instância, ele não pratique a ação ou controle-a, nascer é uma ação que afeta o sujeito em sua relação com a realidade, no dar-se conta da própria existência.
Como se pode observar, ao tomar como exemplo o verbo nascer, destaca-se o caráter filosófico na re-ligação do homem com o mundo. A categoria “voz” é “a diátese fundamental do sujeito no verbo”, conforme Benveniste. O homem transforma, modifica o mundo no mesmo instante em que transforma a si próprio: eis o princípio intrínseco à compreensão da voz média. “O homem cumpre algo que se cumpre nele” (idem, ibidem, p.188).
Em seu estudo, Benveniste dedica-se a extinguir as relações entre sujeito e processo na voz média por oposição à voz ativa. Desse modo, o linguista e filósofo ressalta que, na voz ativa, os verbos marcam processos que se efetuam a partir do sujeito e fora dele, como em soprar. Tendência distinta se marca na voz média, uma vez que os verbos apontam a processos dos quais o sujeito é a sede e fica, portanto, no interior do processo. Será a transitividade verbal o elemento indispensável à conversão do médio ao ativo.
A voz passiva é compreendida por Benveniste como uma transformação histórica da voz média. O sujeito que primeiramente era visto como atuando no mundo pela intenção de atuar sobre si próprio passa, na voz passiva, a ser atuado pelo mundo. O agente converte-se em paciente.
Uma diferenciação entre duas modalidades de diátese é examinada ao final de Ativo e médio no verbo. Considerando-se a posição ocupada pelo sujeito quanto ao processo expresso pelo verbo, haveria para a voz ativa uma noção de diátese externa, enquanto que para a voz média haveria uma diátese interna. Por conseguinte, a diátese soma-se, na proposta de Benveniste, às categorias de pessoa e de número para delimitar o que chama de “campo posicional do sujeito”, isto é, o modo como o sujeito situa-se em relação ao processo verbal.
A contribuição deste trabalho de Benveniste está, parece-nos, no fato de que são apresentadas evidências linguísticas para a compreensão da voz média, ainda que muitos gramáticos tenham-na associado a uma mera marca do interesse do sujeito quanto ao processo.
Suportada pela língua, a marca medial supostamente tem seu valor na oposição à voz ativa – oposição esta que fragiliza o princípio de que a voz média se explica pela intervenção de fatores extralinguísticos. O homem está na língua e, assim sendo, o estudo da voz média é mais uma comprovação disso.
4. A presença da voz média na língua portuguesa: a relação sujeito–
predicado–objeto


Pesquisas recentes propõem-se a discutir a repercussão da voz média na língua portuguesa em seu estado atual. Em artigo de 2002, Camacho objetiva distinguir construções médias de construções reflexivo-recíprocas, buscando “evidências formais, semânticas e tipológicas”. Para tanto, vale-se das considerações de Câmara Jr. (1972), 


para quem o medial corresponde morfossintaticamente a uma construção em que à forma do verbo na voz ativa se acrescenta um pronome adverbal átono, referente à pessoa do sujeito, e a função semântica que veicula é a de uma integração no estado de coisas que dele parte (CAMACHO, 2002, p. 2).


Camacho afirma que há, no português, itens lexicais determinados, todos eles verbos inerentemente pronominais, para sinalizar a voz média. A partir disso, declara que “a voz média é uma categoria linguística potencial, capaz de manifestar-se gramaticalmente”. Mais adiante, ressalta que 


O português dispõe de um elenco considerável de verbos intransitivos em que iniciador e entidade afetada convergem no sujeito, como desaparecer, evoluir etc. por um lado, e cair, morrer etc. por outro. Mesmo assim, esses predicados não se enquadram no sistema de diátese medial, não só por serem destituídos de marcação formal, mas também por não apresentarem contraparte transitiva, que permita algum tipo de seleção. (idem, ibidem, p.5).[grifos nossos].
Destaquemos aqui nossa discordância em relação à posição assumida por Camacho nesta última citação. Se, como já postulado por Benveniste, a voz média deve ser compreendida como o processo em que o agente efetue algo se afetando, a marca formal torna-se secundária, ou até mesmo redundante. Para fins de classificação, relevante deve ser a presença da diátese interna no processo desencadeado pelo verbo. A voz média, portanto, é perceptível inclusive em formas verbais desprovidas de marcação pronominal. O critério de transitividade verbal somente se justifica na contraposição à voz ativa, já que o signo linguístico é configurado pelas oposições que ele desencadeia no interior do sistema.
Além disso, os pronomes átonos são os marcadores tanto da voz média quanto da voz reflexiva, o que obscurece a distinção entre uma e outra simplesmente pelo critério morfossintático. O fator situacional, como determinante do uso que o sujeito faz do sistema (ou melhor, do aparelho formal da enunciação, trazendo Benveniste), não pode ser descartado.
Parece-nos, portanto, que o olhar conferido pelos estudos enunciativos à linguagem impede-nos de cercar a compreensão da voz media à marcação clítica, ou mesmo à transitividade verbal. É inegável que no enfoque medial há traços da voz reflexiva, tal como a concebemos hoje, semântica e sintaticamente, inclusive.
Entretanto, insistimos que os pressupostos benvenisteanos, seja quanto aos planos semiótico e semântico – que marcam a intervenção do homem na língua –, seja quanto à descrição do conceito de diátese –, em especial a interna, que situa o sujeito no interior do processo verbal, como agente diretamente interessado e afetado –, possibilitam a percepção da voz média sob um ponto de vista abrangente e mais próximo à sua noção primeira, aquela anterior à gramática de Dionísio.
A Gramática da Língua Portuguesa (2003), de Maria Helena Mira Mateus et al., reserva algumas páginas ao estudo da voz média. No capítulo A família das construções inacusativas, há uma seção intitulada Construções médias,. após os exemplos “(a) A tua letra lê-se bem”, “(b) Esse tipo de tecido lava-se facilmente” e “(c) Os trabalhos bons corrigem-se com mais prazer”, as construções médias são assim descritas:
Estas construções partilham propriedades que caracterizam a variante inacusativa dos verbos de alternância causativa e as passivas sintácticas e de -se. Com efeito, os verbos que nelas ocorrem são verbos transitivos, que seleccionam um argumento externo e um argumento interno directo, mas nestas construções apenas ocorre o argumento nominal com o papel temático interno[...] (MIRA MATEUS et al., 2003, p. 536).
Conforme se percebe, as considerações de Mira Mateus et al. Retornam à marcação morfossintática como critério obrigatório para a caracterização de uma construção medial. O princípio de que há um argumento nominal com papel temático interno ao processo desencadeado pela forma verbal medial reaparece, mas não se fazem notar na definição acima exposta nem o interesse do sujeito no processo de que é agente (um tecido não teria a intenção de lavar-se a si próprio, por exemplo), nem mesmo a indissociabilidade sujeito/mundo, principal marca da voz média das línguas naturais da Antiguidade.
Ao final da referida seção, os autores atentam para o fato de que “alguns verbos aceitam a construção média sem exigirem morfologia média explícita através do clítico –se” (Idem,ibidem, p. 538). Citam, logo após,os seguintes exemplos para uma “morfologia média abstracta”: “(a) Estas calças vestem bem”,“(b) Esta tinta seca rapidamente” e “(c) Este pavio queima mal”. Mais uma vez comprova-se que a definição de voz média, tal como a estamos pensando neste artigo, não é contemplada pelos estudos desses autores. Realmente, vimos insistindo na proposição de que a marca morfossintática é dispensável à caracterização da voz média, uma vez que a particularidade medial está no significado do processo desencadeado por alguns verbos e na diátese interna própria deles. Porém, não nos parece coerente, pelo menos segundo entendemos, considerar que em um exemplo como “Este pavio queima mal” se observa um interesse do sujeito no processo, muito menos sua re-ligação com o mundo ao se deixar afetar pelo processo do qual se põe como agente.
Voltando à nossa posição inicial, as línguas, desde as antigas, mantêm algumas formas que marcam a voz média, preservando laços dessa relação sujeito-mundo. Exemplo claro e rico dessa voz havia já no latim, nas formas dos verbos depoentes. O interessante é que muitos desses verbos chegaram ao português e fazem-se presentes ainda, embora nosso idioma não tenha, para isso, uma marca morfológica. Vejamos alguns exemplos.
Verbo depoente é aquele que tem uma forma passiva e significado ativo. Um dos mais usados é loquor, falar. Sempre que falo, falo também para mim mesmo. Ao mesmo tempo em que falo para o outro, sou também destinatário da minha própria fala.
Outro verbo depoente é patior, sofrer, padecer. Há uma profunda dimensão de relação sujeito-verbo-objeto expressa por esse verbo, pois a ação de sofrer recai sempre sobre o sujeito que sofre. E sofrer não é sempre sinônimo de padecer, embora essa dimensão sempre acompanhe o processo em sua profundidade. Sofrer transformação pode conter muito de positivo, mas é sempre desalojar-se. Há uma ideia de perda também, portanto.
O verbo patior liga-se também à ideia de paixão através do pretérito perfeito (passus sum). Daí provém o adjetivo passional que evoca duplicidade de apego e dor. Além disso, traz uma dimensão relacional entre sujeito, predicado e duplo objeto, enquanto o sujeito, quando sofre pela dor alheia, tem o outro como objeto indireto (quem sofre, sofre por alguém) e a si mesmo como objeto reflexivo do próprio sofrer, o que faz parte da dimensão depoente do verbo e que na tem marca morfológica na língua portuguesa.
Há certos verbos em que se pode perceber melhor a presença da voz média, mesmo não havendo uma marca morfológica para expressá-la. Etimologicamente, educar forma-se do verbo latino duco (duco, duxi, ductum, ducere), que significa conduzir, precedido da preposição ex, que significa para fora. Essa preposição, em forma prefixal, se junta à forma verbal para que o novo verbo perca seu sentido físico e assuma um outro, metafórico. No entanto, mantém o sentido físico de estar junto, preso a si, de tal forma que só é possível educar, educando-se. Observe-se a presença de sujeito, verbo e duplo objeto: o educando e o próprio educador estão implicados no mesmo processo, o que compreendemos sob a ótica do conceito de diátese.
Há nessa concepção de educação toda uma riqueza a explorar, que cabe muito mais ao pedagogo e menos ao linguista, no que tange ao sentido desse movimento para fora. Porém, dele também deve dar conta o estudioso da linguagem, uma vez que está na posição daquele que revela o desvela o processo encoberto nos meandros da linguagem, meio em que educador e educando simultaneamente se ensinam, pois caminham juntos.
Na metáfora platônica da caverna, tateiam educando e educador nas trevas, à busca da luz que nunca é completa, pois o ser humano está em constante fazer-se e descobrir-se, descobrindo-se no outro e como outro de si mesmo, como objeto da própria investigação.
Meditari é um verbo de forma morfológica passiva, mas com dimensão média. Não se trata da forma ativa meditare, que já contém uma dimensão média, mas a passiva meditari manifesta uma relação medial mais intensa, pois a voz média não está penas no meio entre a passiva e a ativa, mas está no meio entre o sujeito e o mundo. A predicação de meditari é meditar-se a si mesmo enquanto inserido no mundo.
Estas formas de manifestação a voz média não permanecem exclusivas à linguagem filosófica, nem são características apenas das línguas clássicas. Pelo contrário, estão presentes na linguagem de todo dia, em muitos tipos de expressões, como também fazem parte dos textos literários.
Um exemplo claro do português do Brasil, na linguagem coloquial, é o dativo ético, em que aparecem expressões como Me morreu o gato, Agora me acontece mais essa ou Não é que ela me foi embora? Essas expressões mostram claramente a presença da voz média em nosso idioma. A diátese verbal, na mesma medida em que atinge o objeto, afeta concomitantemente o sujeito.
Em Me morreu o gato, como nos demais exemplos, está clara a afetação do sujeito pela relação do predicado com o objeto. Não são, porém, apenas marcas negativas de perda. Podem ocorrer situações em que o sujeito recebe, da relação verbo objeto, uma afetação de carga positiva, como é o caso do exemplo a seguir: Não é que ele me ganha o prêmio?!
Como afirmamos anteriormente, em português, podem-se encontrar exemplos da voz média também nos textos literários, como acontece no poema abaixo, de Cecília Meireles.

Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
Sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
Não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– mais nada. (Cecília Meireles)

Nos fragmentos “não sinto gozo nem tormento.(...) Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, (...) Não sei se fico ou passo. (...) E um dia sei que estarei mudo: – mais nada”, o poeta vive essa integração com o universo de que faz parte. Em sinto... gozo estão presente simultaneamente o sujeito que sente e goza integrado no mundo em que se realiza a ação verbal. Em edifico, permaneço, desfaço e fico, passo e estarei, ao mesmo tempo em que edifico, me edifico; em que faço, me faço; em que fico, fico eu mesmo no mundo a que pertenço indissociavelmente; e estarei, com sua dimensão presente e futura, situando o sujeito no universo com o substantivo mundo.
5. Considerações finais
Pensar a voz média é estabelecer outros padrões para a compreensão da relação sujeito–predicado–objeto. Tentamos ressaltar neste trabalho que considerar a perspectiva medial na linguagem vai além de situar o sujeito no interior do processo verbal de que é agente, ou simplesmente avaliar seu interesse quanto ao resultado do processo. Sujeito e objeto tornam-se indissociáveis na voz média. Por consequência, através dessa categoria, pontua-se a re-ligação do homem com o mundo, do homem com a realidade que dele não se pode separar. O homem, igual à linguagem, só em razão de existir pelo princípio da relação.
A diátese interna manifesta a própria essência epistemológica do ser humano que não se pode distanciar do mundo que observa, descreve e analisa, pois é indissociável dele. Essa separação é apenas ontológica: olhar para o homem sujeito dissociado do universo, objeto da observação, é apenas um processo didático. Homem, universo e linguagem fazem arte de um todo que só pode ser concebido numa visão apodítica universal. Estes estudos são apenas parciais, exigindo de nós, pesquisadores, um aprofundamento teórico e uma observação mais aguçada do emprego da língua.
6. Referências e Citações
BENVENISTE, Émile. Ativo e médio no verbo. In: Problemas de Linguística Geral. São Paulo: Ed. Nacional, Ed. Da Universidade de São Paulo, 1976. Tomo I, p. 183-189.
CAMACHO, Roberto Gomes. Em defesa da categoria de voz média no português. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010244502003000100004&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 10 ago. 2008.
MEIRELES, Cecília. Motivo. Disponível em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/ceciliameireles01.html>Acesso em: 11 set. 2008.
MIRA MATEUS, Maria Helena et. al. Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.

SPROVIERO, Mário Bruno. Linguagem e consciência: a voz média. Disponível em:<http://www.hottopos.com/mirand3/linguage.htm.>Acesso em: 10 ago. 2008.






TRABALHO APRESENTADO NA UNIVERSIDADE ABERTA DE LISBOA 



UM OLHAR PRAGMÁTICO SOBRE AS FORMAS DE CORTESIA DO DISCURSO GAY
Autores: Prof. Dr. Oscar Brisolara e Ema Helena Pontes Torino 

Resumo:
Este trabalho se propõe a lançar um olhar interpretativo pragmático sobre as formas de cortesia e descortesia do discurso gay no Brasil, fundado nos princípios reguladores da interação discursiva da Teoria da Relevância proposta por Sperber e Wilson, a partir da pragmática de Paul Grice, considerando de modo especial as proposições de Brown e Levinson. Desenvolve-se cada vez mais intensamente um discurso próprio dos grupos gays, com formas próprias específicas de cortesia e descortesia na interação sociológica. Os procederes dos falantes em interação discursiva baseiam-se, não apenas em processos linguísticos, mas também em regras de outra natureza, que seguem princípios mais universais. O casal de pensadores ingleses Dan Sperber e Deirdre Wilson propôs a teoria da relevância como instrumento para dar conta da linguagem em uso, em contexto, relacionada com o momento, com o falante e com o ouvinte. Fundam-se no princípio da cooperação entre os interlocutores que negociam significados, associado ao princípio da cortesia e às máximas conversacionais. Há um processo ritualizado na comunicação humana que consagra formas corteses e descorteses de relacionamento linguístico. Brown e Levinson aprofundaram esses estudos aplicando-os às formas de cortesia. Os atos ilocutórios presentes no corpus analisados à luz dos teóricos citados (diálogos do personagem homossexual Crô Valério, interpretado pelo ator Marcelo Serrado nos capítulos exibidos nos dias 22 e 23/03/2011 na novela Fina Estampa da Rede Globo de Televisão) permitem-nos perceber que o grupo social formado pela orientação sexual em questão, tem suas formas próprias de cortesia. Este estudo dedica-se à abordagem das estratégias discursivas de cortesia específicas dos grupos de falantes homossexuais, tanto em suas relações internas dentro do grupo abordado, quanto em relação aos indivíduos de outros grupos sociais não incluídos nessa categoria de cidadãos; objetiva-se, assim, problematizar esses atos de fala, tão presentes no país.

Abstract: 
This work intends to shed a pragmatic interpretation of both forms of courtesy and discourtesy of gay speech in Brazil, based on the regulating principles of discursive interaction of the Theory of Relevance by Sperber and Wilson, from the Paul Grice’s pragmatic. It grows, ever more intensely, a speech typical of gay groups, with their own specific forms of courtesy and discourtesy on sociological interaction. The mechanics of speech in discursive interaction are based not only on linguistic processes, but also in other kinds of rules, which follow more universal principles. This study is dedicated to addressing the discursive strategies of courtesy of specific groups of homosexual speakers, both in its internal relations within the group approached, as compared to individuals from other social groups not included in this category of citizens; the aim is therefore to problematize these speech acts, as present in the country.
Palavras-chave: cortesia; homossexualidade; linguagem/identidade.
Introdução:
O presente trabalho faz uma abordagem da polidez lingüística empregada no discurso dos homossexuais brasileiros, cujas características se têm diferenciado como se pode observar em vários romancistas, e cujos traços se fazem presentes posteriormente nas telenovelas do país.
Nosso estudo focaliza a cortesia linguística relacionada aos fenômenos da comunicação atual. Estabelecendo laços entre a linguística e a linguagem própria dos homossexuais, foi lançado recentemente um dicionário de expressões gays que recebeu o título de "Aurélia, A Dicionária da Língua Afiada". Esse título é uma evidente alusão ao famoso "Dicionário Aurélio", de Aurélio Buarque de Holanda. "Aurélia", lançado pela Editora da Bispa, contém 1.300 verbetes todos descritos, na forma de um dicionário tradicional. 
Os autores (o jornalista Ângelo Vip, e o professor Fred Libi) oferecem ao público em geral o “bajubá”, linguagem usada pelos travestis. O que antes era um código entre os homossexuais, agora se socializa e, de acordo com ele, o livro foi feito através de pesquisas realizadas há cerca de dez anos, por investigadores brasileiros e portugueses. De acordo com o que contempla o nosso estudo, procuramos enfatizar a polidez presente nos diálogos retratados na novela brasileira “Fina Estampa”, que reflete hoje, esta nova realidade linguística.
Relevância e objetivos:
Este trabalho se justifica pela importância que o tema apresenta para a sociedade em geral e de modo especial para os pesquisadores da área da linguagem face à necessidade de se analisar as novas conotações dadas a uma série de elementos do léxico da língua portuguesa surgidos dentro da linguagem específica dos grupos gays, bem como as criações lexicais que emergiram a partir da influência da linguagem própria desses grupos.
Movidos pela novidade do tema e pela contribuição que este estudo pode trazer para a superação de lacunas no conhecimento linguístico, direcionamos esta pesquisa para este campo específico da sociolinguística, a fim de aprofundarmos o entendimento da língua em situações específicas de uso.
Referencial teórico:
A análise pragmática segue uma trajetória histórica conhecida que apenas vamos recuperar brevemente, no entanto somente naqueles aspectos que contribuem para a presente análise. Os estudos pragmáticos vêm dos primórdios do pensamento ocidental a partir do embate radical entre Parmênides e Heráclito que não cabe nos limites desta exposição. Continuam no embate platônico-aristotélico. Aristóteles estabelece todos os fundamentos teóricos que vão servir sustentação de todos os pragmaticistas.
Porém, é no século vinte, a partir da filosofia positivista, que a pragmática vai se consolidar como uma proposta consistente para fundamentar as análises em diversas áreas do pensamento filosófico. A pragmática mais recente em termos de linguagem começa com a Teoria dos Atos de Fala, cujos fundamentos se encontram nos textos de doze conferências proferidas por John Austin na Universidade de Harvard, em 1955, que foram publicadas postumamente no livro How to do Things with Words, em que aparece o conceito fundamental defendido pelo autor, ou seja, que dizer, mais do que transmitir informações, é, sobretudo, uma forma de agir sobre o interlocutor e sobre o mundo circundante.
Nesta mesma direção seguem os trabalhos de Paul Grice, quando, em 1975, publica sua obra Logic and Conversation, na qual propõe o Princípio de Cooperação (seja cooperativo) e as quatro Máximas Conversacionais: a) máxima de quantidade – não diga nem mais nem menos do que o necessário; b) máxima de qualidade - não diga o que você não sabe ser verdadeiro; c) máxima da relevância – só diga o que é relevante; máxima de maneira - seja claro, conciso e ordenado; evite obscuridade, ambigüidade e prolixidade.
Dando continuidade aos estudos pragmáticos, Dan Sperber e Deirdre Wilson denominam de Princípio da Relevância, no livro intitulado Relevance: communication and cognition, o fato de qualquer enunciado, destinado a algum ouvinte, conter em si a presunção de sua própria relevância. O ouvinte, a partir do enunciado recebido, deve estabelecer, através de um raciocínio dedutivo, em ordem de acessibilidade, aquelas implicações que devem ser mais relevantes naquele contexto. Esse é o princípio da relevância.
A Teoria da Relevância de Sperber e Wilson complementa o arcabouço teórico deste trabalho. Ela assume alguns dos pressupostos griceanos, porém diferencia-se ponto de vista de Grice ao reconhecer que a máxima da relevância tem um alcance maior que as demais máximas conversacionais, a ponto de sobrepor-se a estas. 
Por fim, Penelope Brown e Stephen Levinson, da universidade inglesa de Nottingham, na obra Politeness: Some Universals in Language Usage conduzem os estudos pragmáticos para o campo da cortesia no que diz respeito aos bons costumes e à etiqueta, definindo o que é considerado cortês e descortês em diferentes contextos culturais. Esses autores fazem um trabalho complementar ao Princípio de Cooperação de Grice. O que é considerado elegante e educado em determinada cultura, em outra, pode ser interpretado como grosseiro e descortês. Tomam, de Erving Goffman, a diferenciação entre cortesia negativa, que envolve expressões do tipo: se você não se magoa, não desejando ofendê-lo; e cortesia positiva, manifesta em expressões consagradas de tom positivo como: por favor, com licença, com sua permissão e tantíssimas outras de igual força semântico-pragmática.
O léxico de todos os idiomas oferece termos considerados corteses e descorteses, além do mais, há ferramentas linguísticas específicas para demonstrar reconhecimento, deferência, respeito, posição social, do emissor em relação ao receptor e respostas previstas por parte deste último. Esses instrumentos linguísticos têm por finalidade construir e manter a imagem social do indivíduo ou tentar recuperá-la. Nesse intuito, ele usa também estratégias linguísticas de negociação para preservar a imagem do outro, de modo especial em situações em que processos agressivos à imagem alheia podem vir a ser perigosos em relação à imagem de si mesmo perante a comunidade.
Como a imagem é vulnerável, há atos que lhe são ameaçadores, sendo necessário mitigá-los com a finalidade de proteger a própria imagem. A imagem pública do indivíduo tem duas faces, uma positiva e outra negativa. A primeira busca a aceitação do indivíduo pelo grupo; a segunda, visa a garantir-lhe o espaço de ação sobre o grupo. 
Os autores da presente proposta buscam em Goffman o conceito de território próprio do indivíduo, do qual fazem parte seus pensamentos e sentimentos, questões pessoais íntimas, seu espaço temporal e físico e a própria imagem corporal que se vão constituir numa boa imagem a preservar e uma má imagem a evitar. 
Como o indivíduo vive em simbiose com o meio social em que está inserido, tem que se comportar de acordo com um conjunto de regras de polidez que são essenciais na construção e manutenção da própria imagem, que variam de acordo com os costumes e culturas e das quais, desde a mais tenra infância, o sujeito se vai inteirando e cujo manejo vai aprendendo. 
Vale ressaltar que as posições de falante e ouvinte não são fixas. Assim, os indivíduos envolvidos no processo comunicativo alternam-se, ocupando ora uma, ora outra posição. Esse processo de dupla direção caracteriza-se pelo diálogo de gays com outros gays, e de gays com não-gays. Essa situação pragmática dos participantes do discurso influencia as escolhas linguísticas.
Desse modo, aprende que toda a ofensa ao território e à imagem do outro, se não é reparada assim que percebida, representa uma ameaça ao próprio território e à própria imagem positiva. Daí surge todo um ritual que parte das formas de recepção próprias da interação humana, as quais vão muito além das formas linguísticas, perpassando todo o processo de comunicação e convivência dos indivíduos em sociedade.
É justamente neste campo que o discurso gay parece estabelecer uma criativa quebra de expectativas, num emprego do léxico com novas significações marcadas pelo discurso risível, pelo satírico, pela ironia e desfaçatez, chegando, nas situações mais extremas, ao deboche, ao escrachamento e mesmo à ofensa.
Uma estratégia linguística muito eficiente utilizada no discurso gay aqui analisado é o jogo estratégico dos modificadores tanto nominais quanto verbais na construção e desconstrução das faces dos atores desse jogo discursivo. O texto que passaremos a analisar se trata de um discurso fictício, no qual o autor procura reproduzir a fala diária dos indivíduos desse grupo social, reconstruindo as situações diárias de fala com todas as estratégias de linguagem que lhes são próprias. O próprio léxico assume um significado específico para cujo entendimento nem sempre o contexto pragmático é suficiente para elucidar. Por isso, anexamos fragmentos de um dicionário específico dos termos gays.
Julgamos fundamental salientar que o discurso que passamos a analisar é próprio de um grupo social que tem um alto índice de rejeição por parte dos grupos sociais mais conservadores, o que induz os usuários a um tom muitas vezes agressivo e irreverente, que caracteriza um processo social de reação com o objetivo de sobrevivência e busca de um espaço social próprio, como manifestação do instinto de preservação.
Metodologia: 
Este trabalho emerge de uma pesquisa exploratória que tinha como objetivo identificar, em textos de autores brasileiros, a recorrência à linguagem dos homossexuais, para abordar-lhe as características específicas que ela vem assumindo, bem como selecionar os suportes teóricos que nos pareciam mais adequados para sua análise. Em função de inúmeros autores recorrerem a esse tipo de linguagem, optamos por eleger esse gênero, hoje muito popular, de modo especial na telenovela brasileira. Para o presente estudo, escolhemos a novela “Fina Estampa”, produzida e exibida pela Rede Globo de Televisão, que traz abundantes exemplos dessa linguagem. 
Escrita por Aguinaldo Silva, Nelson Nadotti, Patrícia Moretzsohn e Maria Elisa Berredo, com colaboração de Maurício Gyboski e Rodrigo Ribeiro, sob a direção de Marcelo Travesso, Ary Coslov, Claudio Boeckel, Marco Rodrigo e Marcus Figueiredo, e com direção geral de Wolf Maya, a telenovela é atualmente exibida em Portugal, no canal SIC, desde 21 de maio de 2012.
Sua trama conta a história da açoriana Griselda. De família muito pobre, ela veio para o Brasil aos cinco anos. Aos catorze, se casou e, aos quinze anos, foi mãe. Sozinha, criou os três filhos, pois seu marido, Pereirinha, era pescador e morreu em alto-mar. Para sobreviver e criar seus meninos, ela passou a fazer uma das únicas tarefas que havia aprendido fora do serviço doméstico: mecânica. 
O destino de Griselda cruza com o do chefe de cozinha René Velmont, quando esta faz um reparo no carro dele e passa a fazer pequenos serviços em sua mansão, assim ela conhece a esposa dele, madame Teresa Cristina, que tem a seu dispor o seu fiel mordomo, Crodoaldo Valério, apelidado de Crô, interpretado pelo ator Marcelo Serrado; Crô atua num dos papeis principais da novela e foi colocado na trama como uma referência aos homossexuais brasileiros. Sua linguagem representa perfeitamente a polidez linguística própria desse grupo sociológico. 
A análise da linguagem deste personagem no folhetim permitiu-nos penetrar mais profundamente na temática da linguagem dos gays e contribuiu para o melhor entendimento das teorias linguísticas dessa área específica da pragmástica.
Análise/Resultados:
Os fragmentos a seguir analisados fazem parte da transcrição de diálogos do personagem homossexual Crô Valério, já citado anteriormente. Fazem parte dos capítulos exibidos nos dias 22 e 23/03/2011 da novela em análise. A cópia completa desses diálogos faz parte dos anexos deste trabalho. Como se poderá observar, as estratégias de polidez utilizadas pelo falante variam conforme as relações que se estabelecem na situação discursiva, dependendo do risco de ameaça do falante ou do ouvinte na interação discursivo-pragmática estabelecida entre ambos. 
Foram selecionadas expressões ou discursos marcados pela ironia, muitas vezes propositalmente ambíguos, com significação estritamente ligada ao contexto em que são produzidos, os quais se tornam incompreensíveis, fora de seu processo de produção. Somente utilizando um modelo de interpretação pragmática o ouvinte pode acessar uma série de informações contextuais fundamentais ao processo de compreensão. O mesmo acontece com a ironia, pois a interpretação pragmática do enunciado possibilita ao intérprete a construção de uma significação diametralmente oposta àquela sugerida pela sentença tomada de forma isolada. O contexto é fundamental na identificação do tom de um discurso.
Brown e Levinson salientam que a diferença no uso da linguagem que não leva em consideração apenas a sintaxe e a semântica. Contam também com aspectos pragmáticos, ou seja, o conhecimento de mundo em relação ao interlocutor e seu posicionamento em relação ao resultado desejado. Não se trata de uma simples polidez orientada por princípios de educação, mas uma forma de polidez que visa a obter resultados pragmáticos do processo comunicativo. Consiste num uso estratégico da linguagem. De certo modo, a polidez pragmática constitui-se uma quebra ou manipulação das máximas de Grice. 
Dentro do discurso dos gays, elegemos apenas as formas de cortesia ou descortesia que permeiam os relacionamentos entre os actantes. Nessa perspectiva, muitas expressões podem constituir-se em ameaças à face dos actantes. O discurso gay constrói um mundo de valores em relação à pessoa do outro, empregando um léxico criativo e cifrado, impregnado de implicaturas em relação tanto ao interlocutor quanto ao referente humano. 
O eixo principal do diálogo transcrito tem como temática a disputa entre dois serviçais de uma casa da alta burguesia: o mordomo e o motorista, ambos homossexuais. O mordomo é homossexual manifesto; o motorista, mantém discrição quanto a sua sexualidade diante dos demais, apenas se comporta como tal diante do mordomo. As falas analisadas a seguir fazem parte das cenas iniciais do diálogo em que Crô está na praia, de manhã, antes de ir ao trabalho, e dialoga com outros homossexuais. Essa escolha deveu-se à existência nessa passagem de muitos termos e expressões específicos da linguagem do grupo em observação.
Vejam-se as expressões empregadas em que aparece o emprego cifrado de alguns termos, seguido da respectiva análise e interpretação:
Oi, Barbie,... Neste exemplo do diálogo aparece uma forma de tratamento em que o homossexual Clodoaldo, tratado pela corruptela Crô, chama seu colega de Barbie. Barbie, no dicionário gay bajubá significa homossexual malhado e afeminado. Portanto, essa expressão funciona como modificador realizante em relação a outro homossexual identificado no diálogo como Andressa. Um elogio, na teoria de Brown e Levinson, opera como uma forma de cortesia positiva que tem efeito na construção de uma imagem positiva da face do emissor Clodoaldo perante o interlocutor destinatário Andressa.
Na sequência, aparece a expressão: E aí, mafiosas,... de um outro gay identificado como Leona que entabula um diálogo com os dois primeiros. Mafiosa, no mesmo dicionário acima mencionado significa homossexual crítico, que costuma observar tudo e todos com um certo olhar de desdém, arrogância; geralmente tem uma língua muito afiada, critica e fala mal de todos. Nesse tratamento há traços de descortesia, pelo menos a uma primeira leitura, que é, porém, abrandada pelo diálogo entre Crô e Andressa a respeito do novo interlocutor, que precede as palavras dele: Lá vem a Leona, ainda bem que hoje não veio com aquela amapoa loira abusada. Esse comentário induz o leitor a interpretar como ironia o tratamento dado por Leona a Crô e Andressa. Essa leitura é reforçada pelos modificadores amapoa loira abusada, em que o pode-se destacar o conceito de amapoa significa mulher, definida como loira abusada, marcas que permitem estabelecer uma oposição entre o novo interlocutor e a mulher indesejada.
Portanto, trata-se de uma criativa forma de cortesia positiva com que o novo interlocutor se apresenta aos comparsas, elogiando-os como colegas críticos, observadores, superiores aos demais.
Prosseguindo o diálogo, Crô se refere a um outro homossexual tratando-o de arara. Segundo o dicionário gay, arara significa homossexual de voz estridente. Em relação a essa arara, afirma que parece que fez a Elza na Nefertite de sunga preta, em que Elza é roubo e Nefertite, homossexual velho, mas que ainda conserva um estilo aristocrático. Portanto, há uma forma velada de referir-se a outro gay como ladrão. Na sequência do diálogo, Crô afirma que a arara ladra tá dando pinta pro michê que tá com ela. Sendo o significado de michê garoto de programa, ele está gastando o resultado do roubo com um garoto de programa.
Andressa afirma então: Tô bege, to passada com esse bafão na praia. Significa o mesmo que “tô boba”, “tô passada”, abismada. Ao que Crô responde: Acorda, Alice, tem bafo todo dia nesta praia, em que Alice tem o sentido de homossexual tolo, que vive num mundo imaginário (país das maravilhas). Na linguagem gay, Alice funciona como ironia negativa, ou seja, uma cortesia negativa em quem o gay Crô chama seu colega Andressa de ingênuo e sonhador. Dessa forma ele se propõe como crítico, inteligente, perspicaz para entender o significado do universo e das ações alheias. Trata-se, portanto, de uma estratégia de construir sua imagem e sua face diante dos colegas e diante dos heterossexuais, defendendo o princípio da igualdade dos homossexuais com os demais cidadãos.
Retomando a análise em seu conjunto de argumentos dentro da proposta de Brown e Levinson, pode-se afirmar que o discurso gay emprega estratégias linguísticas como processo de afirmação de seus membros como sendo indivíduos iguais aos demais de sua sociedade. Que a linguagem gay emprega ferramentas para construir a imagem coletiva do grupo através de formas de tratamento corteses e descorteses específicas na ocupação de espaços que a sociedade, muitas vezes, tenta recusar.
Quando um sujeito gay emprega em seu discurso elementos morfológicos cifrados que assumem novos sentidos diferentes dos semanticamente consagrados para se comunicar, ele está demonstrando capacidade criativa de que, em sendo diferente, é igualmente importante e tem direito de ser respeitado e prestigiado na comunidade a que tem a direito de pertencer, mantendo-se diferente.
Considerações finais: 
As reflexões precedentes permitem-nos constatar, à luz das teorias lingüísticas pragmáticas que abordam cortesia/descortesia, a existência de uma inovação linguística na língua portuguesa, no que diz respeito aos grupos sociais. Conforme Fernando Pessoa, “O ambiente é alma das coisas. Cada coisa tem uma expressão própria, e essa expressão vem-lhe de fora.” 
Os indivíduos pertencentes a grupos gays vivem em permanente atrito com os grupos mais conservadores da sociedade. Dessa ameaça, surgem estratégias discursivas de autopreservação. Para subverter essa situação, emerge um discurso cifrado, acessível apenas aos iniciados. Trata-se de uma estratégia para construir a imagem do indivíduo e do grupo, criar uma face diferente, e garantir um território próprio.
A polidez discursiva presente nos discursos homossexuais não é um modismo, nem se fez de forma imediata. É consequência da trajetória de um grupo social que busca estratégias de afirmação na própria linguagem, que é uma das manifestações da essência do indivíduo.

BIBLIOGRAFIA:
AUSTIN, John L (1965). How to do Things with words. New York: Oxford University Press.
BROWN, P e Levinson, S. C. (1987) Politeness – Some universals in language usage. Cambridge: Cambridge University Press.
DISCURSO.http://www.esa.esaportugues.com/programa/Lingua/discurso.htm. Disponível em 02/07/2012. Acesso em 07/maio/2012.
FOLHA.COM. Polêmico, “Aurélia” reúne termos do mundo gay. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u60885.shtml. Acesso em 07/mai0/2012. 
GAYPÉDIA. Diálogo de um encontro casual entre amigos homossexuais na praia. Disponível em http://www.gaypedia.com.br/index.php?title=Bajub%C3%A1. Acesso em 07/maio/2012.
H.P. Grice. (1975) Logic and Conversation, in: P. Cole and J.L. Morgan (eds), Sintax and Demantics, vol 3. New York. Academic Press.
SPERBER, D. & Wilson, D. (1986). Relevance: communication and cognition. Cambridge, Mass.: Harvard University Press. The Language and Thought Series.
PESSOA, Fernando. A Quintessência do Desassossego. Ed. Artes e Ofícios, 2007. Porto Alegre – RS.

ANEXOS
ANEXO 1
Diálogo de um encontro casual entre Crô e seus amigos homossexuais na praia. O mordomo Clodoaldo Valério, todos os dias, vai bem cedo á praia, antes de ir para o trabalho:
- Crô: Oi, Barbie, veio aproveitar o sol, abalando no biquíni hem?
- Andressa: Com certeza! Praia cheia hoje, daqui a pouco aqui do lado vai ter babado, muita confusão e gritaria. Lá vem a Leona, ainda bem que hoje não veio com aquela amapoa loira abusada.
- Leona: E aí mafiosas, posso saber por que aquele povo ali grita tanto?
- Crô: Tem uma arara ali, parece que fez a Elza na Nefertite de sunga preta, e ainda tá dando pinta pro michê que tá com ela...
- Andressa: Tô bege, to passada com esse bafão na praia...
- Crô: Acorda, Alice, tem bafo todo dia nesta praia, por isso gosto de vir aqui, me divirto muito...
- Leona: Nossa aí vem um alibã, agora ele resolve tudo, melhor fazer a egípcia e aproveitar o sol...
- Andressa: Se joga, querida, se joga...
- Crô: É, se joga, linda...
Crô vai embora pois descobre que já está atrasado, e não quer perder o próximo micro-ônibus, o que quase acontece, mas correndo e pedindo que lhe esperem, consegue chegar a tempo e encontra seu colega de trabalho, Baltazar, o motorista que trabalha com Crô na mansão da milionária Tereza Cristina.
Crô para o cobrador do micro-ônibus: 
- Querido, espera aqui por mim, espera, espera aí, licença...
Ao entrar cumprimenta Baltazar.
- Crô: Oi! Atrasado também Baltazar?
- Baltazar: A rainha do Nilo disse que eu podia chegar mais tarde.
- Crô: Hum... Então, vamos chegar juntinhos, Zoiudo!
- Baltazar: Não dá prá colocar menos perfume, não?
- Crô: Coisa de primeiro mundo, é da...
Baltazar abre a janela e reclama: Tá me dando dor de cabeça já.
- Crô: Cruzes, que climão!
Ao chegar ao trabalho, Baltazar continua reclamando ao conversar com Crô e a copeira.
- Baltazar: Não uso perfume “nem morta”!
- Crô: Que foi que você disse?
A copeira responde imitando um homossexual: Ele disse, nem morta!
Baltazar: Que é isso, tá louca? Tá louca? Vocês tão de sacanagem comigo agora?
Crô, rindo e debochando, fala para Baltazar: Tenho um uniforme rosa lá, do dia do jogo, se você quiser...
- Baltazar: Tira o cavalinho da chuva que isso não vai acontecer nunca, tá?
- Crô ironiza: Nem morta, santa!
Crô e Baltazar vão à garagem pegar o carro para ir ao supermercado, Crô senta no banco traseiro e implica com Baltazar:
- Crô: Trés bom “Jarbas” Baltazar, antes que você fale qualquer coisa, eu só fiz sua vontade, você não disse que não ia ao banco da frente comigo, então, hum?
- Baltazar: Mentira tua, tá pensando que eu sou idiota? Pensa que eu não sei que você tá curtindo onda, você de madame e eu de motorista.
- Crô fala bem no ouvido de Baltazar: Olha aqui, eu sou uma pessoa de respeito elegantíssima, você deveria se sentir privilegiado de dirigir o carro para uma pessoa como eu, aliás prá falar a verdade, você não é digno nem de tocar num carrão desses da Pitonisa de Tebas.
- Baltazar: Para de fungar no meu cangote, já não basta o dia inteiro ter que ficar olhando para tua cara...
- Crô: Se olha para minha cara, é porque gosta do que vê, porque eu sou linda, adorei!
Na volta do supermercado, a implicância entre os dois continua...
- Crô: Não fique com essa porque eu não sou o tipo de pessoa que sai por aí...
Baltazar sai e deixa Crô falando sozinho, então Crô resolve subir e ver a patroa na sua suíte...
- Crô: Não vou resistir em dar uma olhada lá no quarto.
Encontra com Baltazar na escada...
- Crô: Sai da minha frente.
- Baltazar: - Vai passa, passa, inferno!
- Crô: Muita atenção, coisa exagerada, você está proibido de me chamar de qualquer coisa relacionada ao reino animal.
- Baltazar: Esse eu não quiser?
- Crô: Depois não diga que eu não avisei, sai...
- Baltazar: Escuta aqui...
- Crô: Ai, ui! Que é isso? Se fosse uma cobra me mordia. Que é? Hum? Tá me olhando por quê? A minha voz continua a mesma, mas os meus cabelos também, dá licença.
- Baltazar: Escuta aqui, eu tô de saco cheio, se a bicha pensa que vai me tratar assim como se eu fosse nada, não vou deixar barato não, hem? Hum! Que hum nada!
Crô prepara a bandeja do lanche da patroa Tereza Cristina e canta.
- Crô: Quem espera que a vida seja feita de ilusão, pode até ficar maluco e morrer na solidão, é preciso ter cuidado prá mais tarde não sofrer, é preciso saber viver.
Baltazar chega à cozinha: Que é, coisinha, hem? A gazelinha vai ficar indiferente agora, toda hora que eu aparecer?
- Crô: Eu sou um ser humano sabia? Eu rio, eu sofro, eu choro, eu sou um homem latino americano, um homem comum.
- Baltazar: Homem? só se for para os teu garotões lá, porque prá mim você não passa de ...
- Crô: Aí, tá vendo, é disso que eu tô falando, é bulling, eu não quero, não devo e não passo mais pelas suas provocações, nem que a vaca cante Babalu em grego.
Crô leva o lanche no quarto para a patroa e Baltazar vai atrás discutindo, no momento em que ambos descem a escada, a campainha toca e Crô se apressa, dizendo: 
- Espera, Baltazar, Ladys first...
- Baltazar: Desde quando tu me chamas toda hora de Baltazar?
- Crô: Ué? Não é seu nome? Baltazar, é como chamo teu nome.
- Baltazar: Tu sempre me chamou de Zoiudo.
- Crô: Chamava, passado.
- Baltazar: - Escuta aqui, ó passarinha, até quando vai ficar com essa rabugice, ó...
- Crô: O, o quê? Já avisei que somos companheiros de trabalho, portanto nos chamamos pelo nome, você Baltazar, euzinha aqui, Clodoaldo Valério.
- Baltazar: Ah é? Eu pensei que era eu Tarzan e você Jane!
- Crô: Me ofende, me ofende prá ver se eu não te processo por assédio, hum...
- Baltazar: Tá “bonita”?
Ambos se descontrolam e começam a brigar, quando a patroa Tereza Cristina chega e grita:
- Congela!!!

ANEXO 2
DICIONÁRIO BRASILEIRO GAY BAJUBÁ - AURÉLIA
Dicionário Brasileiro Gay (do bajubá): Bajubá: Baseado nas línguas africanas empregadas pelo candomblé, é a linguagem praticada inicialmente pelos travestis e posteriormente estendida a todo o universo gay. O bajubá falado emprega uma mistura lexical (do próprio bajubá, do português e, em menor grau, do tupi) sobre a base gramatical e fonológica da língua portuguesa.
Abalar: fazer ago bem feito, o mesmo que arrasar
Abusada: alguém que não fala com ninguém, que menospreza os outros
Alibã: policial 
Alice: homossexual tolo, que vive num mundo imaginário (país das maravilhas)
Amapoa: mulher
Arara: homossexual de voz estridente
Babado: acontecimento marcante, bafão, bafo.
Barbie: homossexual malhado e afeminado
Elza: roubo
Fazer a egípcia: virar a cara e ficar de perfil (como as figuras egípcias), a fim de menosprezar ou ignorar alguém
Mafiosa: homossexual crítico, que costuma observar tudo e todos com um certo olhar de desdém, arrogância; geralmente tem uma língua muito afiada, critica e fala mal de todos
Michê: garoto de programa 
Nefertite: homossexual velho, mas que ainda conserva um estilo aristocrático
Se joga: expressão de estímulo, o mesmo que “vá em frente”
Tô bege: o mesmo que “tô boba”, “tô passada”, abismada.


SAUSSURE E A ARTE POÉTICA - ANAGRAMÁTICA - SAUSSURE AND POETIC ART - ANAGRAMMATIC


À BEIRA DO SENA AO ENTARDECER

Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara

         O grande linguista genebrino Ferdinand de Saussure era aficionado em regularidades e acreditava que subjazia à criação poética um processo secreto que regia a arte de poetar. Despendeu três importantes anos de seu trabalho nessa faina.

         O objetivo fundamental de Saussure era investigar a o segredo oculto, uma lei verificável do anagrama, do texto oculto latente que geraria o poema. O pesquisador genebrino acreditava existir um suporte secreto que guiaria o poeta. Esse suporte seria negado, oculto aos não iniciados na arte.

         Começa, em dezembro 1905, uma pesquisa que vai continuar até abril de 1909. A importância que o estudioso deu a esse trabalho manifesta-se na quantidade de material produzido. Consta que são oito caixas contendo em torno de 150 cadernos.

         Parece que sua curiosidade sobre o tema inicia pela observação de inscrições públicas. Os primeiros versos ele teria encontrado no Fórum Romano. Os seguintes estariam nos túmulos dos Cipiões.  Partiu da análise dos versos saturninos latinos, em que essas inscrições estavam versificadas. Prosseguiu seu trabalho, analisando também Homero, Virgílio, Lucrécio, Sêneca, Horácio, Ovídio, Ângelo Policiano, Thomas Johnson, Rosati, Pascoli e outros poetas.

         Todo esse trabalho buscava invariantes para o processo de criação poética. Partia do pressuposto de que os poetas, mesmo não tendo consciência do processo, construíam necessariamente seus versos em torno de uma ou algumas palavras-chave que se escondiam no interior do poema e que se manifestavam num lugar privilegiado da obra chamado por ele de locus princeps.

         Muitos estudiosos desde então têm dedicado pesquisas ao estudo inédito de Saussure. Entre eles Roman Jakobson, Robert Godel, Claude Lévi-Strauss, Tullio di Mauro, Jean Starobinski, Simon Bouquet, Claudine Normand, Johannes Fehr e, mais contemporaneamente, no Brasil, Edward Lopes, os irmãos Campos, apenas para mencionar os que mais se destacaram. Há, neste momento, uma série de dissertações de mestrado e teses de doutorado investigado esse enorme trabalho.

         O saturnino é um verso tipicamente romano. É preciso esclarecer que os romanos, no período áureo de sua literatura, do ano 78 a. C. até a morte de Augusto, em 14 p. C. (PARATORE, 1983, p. 7), abandonaram o verso saturnino para dedicarem-se ao hexâmetro grego.

         Essa influência continua mesmo muito além desse período, como prossegue também, paralelamente, o uso do metro nacional, porém este último vai perdendo gradativamente seu prestígio até cair no total esquecimento.

         O uso do metro grego em Roma tem muitos aspectos negativos, pois os romanos adotaram modelos literários estrangeiros e abandonaram sua cultura literária nacional.
         Havia o costume de os homens mais ilustrados de Roma aperfeiçoar sua formação junto aos mestres gregos, transferindo-se de modo especial para Atenas. Esse processo de helenização da cultura romana se manteve por muitos séculos, chegando mesmo até ao período da cristianização dessa cultura.

         O próprio cristianismo tem fortes marcas dos metros gregos em seus hinos e cânticos sagrados. Basta lembrar o Kyrie eleison (Κύριε ελέησον), poema de contrição que é cantado em petição de perdão dos pecados nos ritos iniciais da missa latina. Aliás, a própria doutrina cristã está impregnada de influências dos filósofos gregos e romanos, marcadamente os de orientação estoica.

         O verso saturnino era, portanto, um tipo de metro nacional, considerado indígena pelo refinado gosto dos poetas e leitores influenciados pelo círculo helenizante dos Cipiões, grupo de romanos que difundia a cultura grega na orgulhosa Roma.

         Retornando ao saturnino, lembremos que a Itália era também chamada pelos antigos romanos de Satura Tellus, ou seja, Terra de Saturno. Esse deus nacional correspondia ao deus grego Cronos (Χρόνος). Segundo a mitologia romana mais antiga, teria sido ele o criador do povo fortificado que viria a chamar-se mais tarde de romano. Teria ensinado aos habitantes da Itália o cultivo da terra.

         A imagem do antigo deus era representada sempre com uma foice e uma podadeira nas mãos. Teria introduzido na península itálica o costume da poda das videiras. As festas dedicadas a Saturno eram as saturnalia. Trata-se de festejos primitivos do mês de dezembro, festas de fim de ano, antes mesmo do surgimento da cidade de Roma. As saturnalia eram festas mais ou menos licenciosas, onde se subvertia a ordem social: os escravos, como quer uma antiga tradição, mandavam em seus amos e esses os serviam à mesa (GRIMAL, 1966, p. 475).

         Compreende-se, assim, que os requintados cidadãos romanos da época dos imperadores não vissem com bons olhos uma divindade primitiva, rude e ligada à terra. Por isso, rejeitaram também a literatura vinculada a essa divindade rural e elegeram os metros gregos de maior prestígio entre essa elite.

         Estas observações sobre a primitiva literatura romana justificam-se pelo fato de Saussure estar preocupado, nos anagramas, em descobrir os fundamentos da produção poética e que poderiam estar escondidos nesses meandros da história e da mitologia.

         Adotaram também, os romanos, os deuses gregos que assumiram em Roma outros nomes, mas mantinham as mesmas características de seus pares gregos. A própria língua latina, chamada hoje de latim vulgar, utilizada até então por toda a população romana, passa por profundas mudanças e, com base na gramática da língua grega, molda-se pelas declinações e pelos modelos formais e pelos demais parâmetros léxico-morfo-sintáticos desse idioma de maior prestígio em todo o Mediterrâneo, qual seja, o grego.

         Somente a classe culta de Roma falava e escrevia nessa variante da língua. O homem comum continuou a falar a velha língua latina formadora das atuais línguas neolatinas, excetuando-se a nomenclatura científica.

         O verso saturnino faz parte da chamada fase pré-literária de Roma (SOUZA, 1977, p. 26). Está ligado a uma velha tradição que afirmava haver sido Saturno o primeiro colonizador do Lácio. Era chamado de verso fáunio quando tinha caráter cômico.

         Apesar de muito se haver pesquisado a respeito do saturnino, não se chegou a esclarecer sua natureza, se possuía um número determinado de sílabas ou não, se tinha um determinado ritmo, se era marcado pela quantidade ou pelo acento, ou se não obedecia a marcação de qualquer natureza. Parece, entretanto, que a quantidade das sílabas na sucessão das palavras tinha alguma importância.

         Isso se deduz do estudo feito da inscrição em saturnino representada por um verso com que os Metelli, ricos cidadãos romanos do tempo de Névio (275 a 201 a. C.), responderam a provocações do poeta.
         É preciso explicar aqui um primitivo costume romano de manter discussões públicas através de inscrições afixadas em lugares de grande circulação. Poetas como Névio, mais tarde Marcial e Juvenal, usavam desse expediente para fazer críticas a cidadãos ilustres, muitas vezes até com fins menos nobres como os de obter favores e mesmo dinheiro.

         A inscrição que aparece a seguir é uma resposta dos METELLI, família de grande prestígio na cidade, a uma dessas inscrições críticas de Névio, poeta mordaz que se tornara célebre e odiado por esse tipo de poema que vai dar origem à sátira romana.

A inscrição é:
                       DABUNT MALUM METELLI NAEVIO POETAE.

         Nela, duas palavras de duas sílabas são seguidas de três palavras de três sílabas, cujo significado ambíguo poderia ser os Metelli darão uma maçã ou darão um mal ao poeta Névio. A palavra maçã em latim é malum, i e a palavra mal é malus, a, um, mas o acusativo singular de ambas (que é a forma de marcar o objeto direto) é malum.

         Névio, como foi dito acima, tornara-se famoso pelo tom agressivo de suas sátiras. Havia escrito um poema contra os Metelli que continha o seguinte verso, também ambíguo:

         FATO ROMAE METELLI FIUNT CONSULES.

que pode ser traduzido por os Metelli fazem-se Cônsules de Roma pelo destino ou por azarpor desgraça.

         Essas inscrições são exemplos de verso saturnino muito abundante então na grande metrópole das margens do Tibre, como em toda a península itálica. O saturnino, também conhecido por satúrnio, não é um tipo de verso exclusivo de Roma. Também os sabinos e os oscos o conheciam. Não há dúvida, porém, de que seja um verso indígena, isto é, oriundo da península itálica. Até o surgimento de Névio, foi a única forma de verso conhecida nessa primitiva Roma.

         Saussure elege casualmente esse tipo de poema para iniciar seus trabalhos, ao visitar Roma e encontrá-los em monumentos públicos antigos. Nessas pesquisas iniciais, acaba por descobrir algumas regularidades específicas.

         Para Saussure, esse tipo de verso foi tão importante que 17 de seus cadernos de estudos anagramáticos são dedicados a analisá-los. Seu interesse pelo tema confirma-se pelo que escreveu em um caderno de notas preliminares:

A razão pode ter residido na ideia religiosa de que uma invocação, uma prece, um hino, só produzia efeito com a condição de misturar as sílabas do nome divino ao texto (STAROBINSKI, 1974, p. 42).

         Sabe-se que todos os hinos sagrados primitivos da antiga Roma foram compostos em versos saturninos, especialmente por Livius Andronicus, poeta tarentino trazido como escravo para a Urbs, no século III a. C., com a conquista da Magna Graecia.  Assim era conhecida a colônia grega do sul da Itália que ia de Tarento à Sicília.

         Livius, como um dos únicos homens letrados na Roma de então, prisioneiro do general romano Livius Salinator, de onde lhe vem o prenome, foi encarregado da composição dos hinos oficiais às divindades romanas.

         Esse fato de ter sido o saturnino o molde literário do conjunto de hinos sagrados primitivos do povo romano deve ter levado Saussure, profundo conhecedor da história, a começar seus estudos anagramáticos por aí, como que na busca de algum vestígio de uma fórmula sagrada de composição que guiava o poeta religioso, cujos moldes poderiam ter passado à poesia laica sem que a história tivesse registrado o isso.

         Ainda analisando o saturnino, ele constata a existência de uma palavra-tema sob o poema. Em carta datada de 1906 afirma:

Tudo o que eu escrevia sobre o metro datílico (ou melhor, espondaico) subsiste, mas agora é pela Aliteração que cheguei a obter a chave do Saturnino, mais complicada do que parecia. Todo o fenômeno da Aliteração (e também das rimas) que se observa no Saturnino é tão somente uma parte insignificante de um fenômeno mais geral ou melhor, absolutamente total. A totalidade das sílabas de cada verso Saturnino obedece a uma lei de aliteração, da primeira à última sílaba; e sem que uma única quantidade de vogal a mais seja escrupulosamente levada em conta. O resultado é tão surpreendente que somos levados a nos perguntar, antes de tudo, como os autores desses versos (em parte literários com Andronicus e Naevius) podiam ter tempo para se dar a esse tipo de quebra-cabeça: pois o Saturnino é  um verdadeiro jogo chinês, independentemente de qualquer consideração sobre métrica (STAROBINSKI, 1974, p. 17).

         Pelas palavras acima, percebe-se a importância que tiveram, na teoria saussuriana, os estudos do verso saturnino, tão pouco conhecido hoje, pois que dele nos restam apenas fragmentos e inscrições públicas.

         Saussure emprega, no texto acima, os termos dactílico e espondeu. O dáctilo era um pé formado por uma sílaba longa e duas breves e o espondeu formado por duas sílabas longas.

         Segundo a métrica grega e latina, os versos eram medidos pela quantidade de tempo de sua realização e não pela intensidade como se faz na métrica contemporânea. As sílabas eram classificadas em longas e breves. Uma sílaba longa equivalia a duas breves. Assim, o verso tinha uma quantidade matematicamente precisa de duração como ocorre com a música.

         As sílabas agrupavam-se em pés. O pé é uma combinação de duas ou mais sílabas longas e breves. A sílaba do pé, que se pronuncia de modo mais intenso, na qual se eleva a voz, chama-se arsis e a sílaba em que se abaixa a voz chama-se thesis. A maior intensidade de voz  na pronúncia da arsis chama-se ictus. A arsis é geralmente formada por sílaba longa e a thesis por uma ou mais sílabas breves. O ritmo é, então, a sucessão simétrica e periódica de arsis e thesis.

         Os pés eram classificados de acordo com sua composição, ou seja, de grupos de sílabas de diferentes durações, conforme segue:

a) jambo: formado por uma sílaba breve e uma longa (rōsăs);
b) troqueu ou coreu: formado por uma sílaba longa e uma breve (mēnsă);
c) espondeu: formado por duas sílabas longas (vīrtŭs);
d) dátilo: formado por uma sílaba longa e duas breves (pātrĭbŭs);
e) anapesto: formado por duas sílabas breves e uma longa (bōnĭtăs);
f) tríbraco: formado por três sílabas breves (dōmĭně).

         As sílabas latinas, como também as gregas, podem ser longas por natureza ou por posição.  Como exemplo de sílabas longas por natureza podem-se apresentar os ditongos ou as resultantes de contrações de qualquer tipo. São longas por posição, as sílabas que precedem consoantes duplas ou geminadas. São breves por natureza vogais antes de vogais. Saliente-se que não se tinha o conceito de semivogal.

         Havia também, nessa métrica clássica, uma divisão do verso em duas partes, formando-se uma pausa no meio do verso que recebe o nome de cesura. Esse termo latino, que significa corte, dividia  o verso em dois hemistícios, ou seja, duas metades de verso (hemistício, do grego ήmi = metade e sticόV = verso). Saussure vai usar essa divisão na busca dos anagramas, como se verá mais adiante.

         Quero deixar claro que não estou fazendo um tratado de métrica greco-latina. O que exponho aqui é apenas o elementar para o leitor que não teve oportunidade de entrar em contato com esses tipos de metro. Essas informações são totalmente dispensáveis aos conhecedores da métrica clássica.

         Sobre o saturnino, Saussure chega a conclusões admiráveis. Afirma que uma vogal não tem direito de figurar no verso saturnino a não ser que tenha sua contravogal em um lugar qualquer do verso (STAROBINSKI, 1974, p. 17).

         A contravogal aparece em muitos versos de nossos autores. Veja-se o exemplo de Castro Alves: Donzela bela que me inspira a lira (CASTRO ALVES, 1974, p. 28). A assonância das vogais do verso citado em que o /e/ de “donzela” e de “bela” se contrapõe à vogal mais alta /i/ de “inspira” e “lira” é um tipo de oposição semelhante aos que Saussure encontra no saturnino latino. Porém, a regularidade encontrada pelo autor está acima desse processo. É algo mais fundamental e anterior a esses mecanismos.

         Assim como há essa simetria entre as vogais do verso saturnino, há idêntico processo entre as consoantes. Pode-se encontrar essa correspondência entre consoantes em nossa poesia. É o caso do poema simbolista de Eugênio de Castro:

 São amantes delirantes que em amenos
 Beijos se beijam, Flor, à flor dos frescos fenos (CASTRO, apud MOISÉS, 1985, p. 352).

         Nesses versos o fonema /m/ de “amantes” e “amenos” se opõe a /b/ de beijos e beijam. São bilabiais plosivas que se opõem de verso para verso. Portanto, as mesmas regularidades que Saussure encontrou no verso saturnino latino são encontráveis facilmente nos versos de língua portuguesa.

         Para construir seu poema, o poeta deveria impregnar-se das combinações fônicas da palavra-tema. Essa palavra-tema é fracionada, manifestando-se dentro de algumas palavras geralmente ligadas a nomes próprios do herói a quem o poema deve elogiar.

         Primeiramente, o poeta deveria ter diante de si um grande número de fragmentos do nome do herói do seu poema. Se o herói é Hercolei (forma latina de Hércules), o poeta dispõe dos fragmentos leicool, errccl, etc. de que se utilizará para distribuir dentro de seus versos.

         Esses fragmentos devem estar prodigamente distribuídos dentro do poema. Assim, o vocábulo afleita retoma o fragmento lei de Hercolei.

         Tanto vogais quanto consoantes da palavra-tema devem aparecer em todos os versos em números pares. Caso não apareça uma delas num verso, deve ser compensada no verso seguinte.

         Tanto o verso latino como o grego, conforme se viu, eram divididos em duas partes pela cesura, palavra que significa corte. A primeira parte do verso era chamada de primeiro hemistício e a segunda, de segundo hemistício. Conforme foi dito acima, constata também o linguista genebrino relações entre o primeiro hemistício e o segundo. As vogais ou consoantes da palavra-tema não existentes no primeiro hemistício necessariamente deveriam aparecer no segundo.

         Quanto ao termo anagrama, Saussure afirma em outro caderno ser mais adequado o termo anafonia que, para ele, seria uma simples assonância, a qual se constituiria de vogal mais alta, substituindo  vogal mais baixa da palavra-tema. Veja-se o exemplo já citado de Castro Alves: Donzela bela que me inspira a lira em que os /e/ de donzela e bela aparecem elevados na vogal /i/ mais alta de inspira e lira.

         Os romanos abandonaram, como foi dito, o verso saturnino para dedicarem-se ao hexâmetro, metro de origem grega, em que os grandes poetas  compuseram suas obras, de modo especial o poeta épico Homero que, no século IX a. C., escreveu a Ilíada e a Odisseia. Não significa que os gregos poetassem apenas nesse metro. O hexâmetro era o verso de maior prestígio na literatura grega, havendo, porém, muitos outros tipos de metro.

         Saussure também fez análise de poemas latinos que usavam o metro grego, como é o caso de Virgílio, na sua obra Eneida. Uma das características do hexâmetro era o emprego do ritmo dactílico, isto é, no verso grego que tinha seis pés, por isso hexâmetro, os quatro primeiros pés eram dáctilos ou espondeus. Como se viu acima, o espondeu era formado de duas sílabas longas e o dáctilo formado por uma sílaba longa e duas breves.

         Usando ainda da métrica latina e grega, Saussure apresenta como uma das provas de sua teoria a inscrição latina que traz dentro de si as sílabas do nome de Cipião, herói latino sobre o qual o poema cujo verso é apresentado abaixo foi escrito. Cipião, em latim, é Scipio:

         Taurasia Cisauna Samnio cepit (STAROBINSKI, 1974, p. 22).

         A tradução seria: capturou Taurasia, Cisauna e Amnio (nome de três cidades capturadas na guerra Púnica). O nome de Cipião (Scipio), o herói do poema, não aparece no verso, aparece somente no anagrama: o S aparece maiúsculo em Samnio o ci parece em Cisauna, o pi, em cepit e io, em Samnio.
         Outro verso traz o anagrama de Cornelius, apresentando somente as vogais do nome do herói:
         Mors perfecit  tua ut essent (STAROBINSKI, 1974, p. 23).

         Esse fragmento significa A tua morte aperfeiçoa para que sejam...

         Em Mors aparece a vogal /o/, do nome do herói, em perfecit  aparece a vogal /e/, ainda em perfecit  aparece /i/, e em ut,  aparece a vogal /u/. No verso ainda aparece a vogal /a/ cuja presença Saussure justifica pela possibilidade de significar Cornelia gens, ou seja, família dos Cornélios. Os romanos usavam o prenomen, que corresponde ao nosso nome. O de Cornélio era Lucius. O nomen corresponde ao sobrenome. Cornelius era então a relação do nome do herói com o de sua família a Cornelia gens. Encontra-se, também, em perfecit, o primeiro /e/ breve, enquanto que o /e/ de Cornelius é longo, mas Saussure justifica seu aparecimento pela assonância com o /e/ longo.

         Esse é o resultado do longo estudo de Saussure sobre os versos saturninos. Depois, passou a analisar os versos gregos. Começa a tratar da obra de Homero. Destaque-se o fato de que essa ordem é a estabelecida por Godel, não necessariamente a percorrida pelo autor.

         Aqui ele introduz o termo hipograma que significa o que está por baixo, o qual define como gênero de anagrama a reconhecer nas literaturas antigas. Em grego, a palavra UpogrάmmaatoV, significa inscrição, firma; o verbo Upogrάjw significa escrever por baixo, subscrever, registrar no protocolo, pintar debaixo, pintar os olhos; e o substantivo grajh,hV significa inscrição, contorno, traço, ação de pintar os olhos. Saussure lembra essas três palavras gregas para justificar a escolha do termo hipograma. Diz ele:

Sem ter motivo para manter particularmente o termo hipograma, no qual me detive, me parece que a palavra não corresponde demasiadamente mal ao que deve ser designado. Não está em desacordo muito grave com os sentidos de ύpogrάjein, ύpogrάjh ύpogrάmma. etc., se excetuarmos  o sentido de assinatura  que não é  senão um dos que ele toma, seja fazer alusão; seja reproduzir por escrito como um escrivão, um secretário, ou mesmo (pensávamos neste sentido especial mais divulgado) sublinhar por meio de pintura os traços do rosto. Quando tomarmos mesmo o sentido mais difundido ainda que mais especial, de sublinhar por meio de pintura os traços do rosto, não haverá conflito entre o termo grego e nossa maneira de empregá-lo; pois trata-se ainda no “hipograma” de sublinhar um nome, uma palavra, esforçando-se por repetir-lhe as sílabas, e dando-lhe assim uma segunda maneira de ser, fictícia, acrescentada, por assim dizer, à forma original da palavra(STAROBINSKI, 1974, p. 23-4).

         Em estudo posterior, dedicado ao poeta latino Lucrécio, Saussure propõe o termo paragrama para substituir o termo anagrama. Afirma:

O termo anagrama é substituído por este, mais justo, paragrama.  Nem anagrama, nem paragrama, querem dizer que a poesia se dirige para essas figuras segundo os signos escritos; mas substituir –grama por –fono em uma ou outra dessas palavras levaria justamente a fazer crer que se trata de uma coisa espantosa. Anagrama por oposição a Paragrama, será reservado ao caso em que o autor se contenta em dispor num pequeno espaço, como aquele de uma palavra ou duas, todos os elementos da palavra-tema, aproximadamente como  no “anagrama” segundo a definição; - figura de importância  absolutamente restrita no meio dos fenômenos oferecidos ao estudo, e que representa em geral uma parte ou um acidente do Paragrama(STAROBINSKI, 1974, p. 24).

         Portanto, o paragrama seria um tipo de anagrama especial, para casos em que esse esteja contido em poucas palavras. Continuando seu trabalho de estabelecer uma nomenclatura específica para sua teoria, Saussure introduz termos como logograma e antigrama.

A segunda utilidade de Logograma ao lado de antigrama é – além de marcar o antigrama tomado nele mesmo – poder aplicar-se à soma de antigramas quando há, por exemplo, dez, doze, quinze que se sucedem em uma passagem em torno de uma mesma palavra. Há logogramas que se decompõem em múltiplos antigramas e que têm, entretanto, uma razão para serem ditos de uma só palavra porque giram em torno de uma só palavra. Indica assim a unidade do tema, do motivo, e, deste ponto de vista, deixa de ser chocante na sua parte Logo – que não precisa mais ser tomada necessariamente no sentido da palavra fônica, nem mesmo de palavra: é um “grama”, gramma, em torno de um assunto que inspire o conjunto da passagem e é mais ou menos o logos, a unidade razoável, o comentário (STAROBINSKI, 1974, p. 25).

         O sentido primeiro da palavra grega grάmma (grama) é letra. Depois podia ser letras, isto é, a literatura. Ainda podia significar texto escrito, carta, inscrição, registro, lista, papel, documento, livro, gramática, ciências, quadro.

         Quer me parecer, porém, que Saussure a tenha empregado aqui no sentido de letra, com a significação de certo modo ambígua entre letra e fonema, já aludida neste trabalho, pois, quando busca no interior do verso letras que girem em torno da palavra-tema, busca, na verdade fonemas. Assim, antigrama seria a letra, ou melhor, o fonema, que evoca, por oposição, algum fonema dessa palavra-tema. É o caso das assonâncias do poema de Castro Alves aqui citado, em que o /e/ do primeiro hemistício é elevado para /i/ no segundo.

         Quanto ao termo logograma, não há dele registro nos dicionários da língua portuguesa. É também ele de origem grega. O radical logo de lόgoV em grego pode ter um grande número de significações como: palavra, dito, revelação divina, resposta dum oráculo, máxima, sentença, exemplo, decisão, resolução, condição, promessa, pretexto, argumento, ordem, menção, notícia que corre, conversação, relato, matéria de estudo ou de conversação, razão, inteligência, senso comum, juízo, a razão de uma coisa, valor que se dá a uma coisa, motivo, opinião, estima, justificação, explicação, a razão divina, o verbo de Deus.

         Parece, porém, que Saussure usa o termo logograma, em seu sentido mais literal, em que o radical logo recebe o sentido de palavra, enquanto que grama se reduz simplesmente a letra. O logograma seria a palavra onde se manifestam as letras da palavra-tema ou, mais especificamente, os fonemas.

         Starobinski usa a figura de Ísis reunindo o corpo despedaçado de Osíris para aludir ao trabalho de busca do hipograma. Assim como a imagem de Osíris guiava Ísis na sua busca, assim também o nome do deus ou do herói guia o pesquisador na busca das palavras-tema.

         Isso implica dizer que o poeta, além da construção do ritmo, do metro e das rimas, tinha ainda a árdua tarefa de disseminar, todo fragmentado, o nome do herói, como palavra-tema de sua obra, por entre os versos de sua composição.
         Mais adiante, o autor vai afirmar que esse procedimento é inevitável, mas pode ser inconsciente. Seria uma conditio sine qua non de todo o fazer poético, seja ele religioso ou leigo, antigo ou presente.

         Ainda aparentemente insatisfeito com a nomenclatura que usa, busca nesta fase de estudos, um novo termo, a anafonia. Esse termo provém do radical grego άna, que pode ser advérbio com os significados: em cima, no alto; que pode também ser preposição com o sentido de através de, ao longo de, durante, por, cada. Entra como segundo elemento da composição o substantivo grego jonή, que significa voz, e nas línguas neolatinas passa a ter a significação também de som.

Tomando o significado mais adequado de άna para este caso, que me parece ser, não do advérbio e, sim, da preposição através de, e o de jonή, como som, teríamos o significado do termo anafonia como a repetição de sons, de pares de sons, formando não apenas aliterações, mas verdadeiras cadeias de sons que, aos pares, marcam o jogo do poeta em torno da palavra-tema.

         Em carta a Antoine Meillet, datada de 23 de fevereiro de 1907, referindo-se à anafonia diz:

A diferença evidentemente incalculável entre um fonismo aliterante e um fonismo que se apoie sobre qualquer sílaba é que, enquanto ficamos ligados à inicial, pode parecer que é o ritmo do verso que está em jogo, e que procurando acentuar-se mais, provoca inícios de palavras semelhantes, sob um princípio que não supõe absolutamente, da parte do poeta, a análise da palavra. (...) Mas, se for verificado, ao contrário, que todas as sílabas podem concorrer à simetria do seu esquema rítmico que dite estas combinações, e, que um segundo princípio, independentemente do próprio verso, se associava ao primeiro para constituir a forma poética recebida. Para satisfazer esta segunda condição do carmen completamente independente  da constituição dos pés ou dos ictus, eu afirmo efetivamente (como sendo minha tese a partir de agora) que o poeta se entregava, e tinha como “metier”  comum entregar-se à análise fônica  das palavras que constituía provavelmente, desde os mais antigos tempos indo-europeus, a superioridade, a qualidade particular do kavis  dos hindus, dos Vates dos latinos, etc.(STAROBINSKI, 1974,  p. 27).

         Essa afirmativa saussuriana mostra que, para ele, o processo anagramático é muito mais amplo do que o simples processo das aliterações ou das rimas, encontrado nos estudos de teoria literária. O termo latino carmen empregado na citação acima significa simplesmente poema.

         Em seguida, Saussure dá um exemplo da anafonia num verso latino sobre Cipião, em que os fonemas da palavra-tema aparecem repetidos duas vezes:
          Subigit omne Loucnam opsidesque abdoucit (Subjugou toda Loucnam e afastou os reféns).

         Nesse verso há imprecisões gramaticais como omne, que está na função de objeto direto e pela sintaxe latina deveria ser omnem, mas como se verá abaixo, o poeta buscava a repetição de sons pares. Caso repetisse o m, ficariam três fonemas /m/, o que quebraria a série de pares que o verso apresenta. Saussure percebe que, nesse verso, há 8 repetições de fonemas que formam oito pares (STAROBINSKI, 1974, p. 26).

         É um jogo de repetições que o autor constata ainda no verso saturnino. Num caderno sem título, aparece a frase latina que Starobinski coloca em destaque:

         NUMERO DEUS PARI GAUDET. (Deus alegra-se com o número par).

         Essa citação manifesta uma espécie de deslumbramento do linguista genebrino diante dessas regularidades que deixam transparecer uma verdadeira teia de repetições de fonemas no interior dos versos, reapresentando, fragmentada a palavra-tema (STAROBINSKI, 1974, p.18).

         Starobinski apresenta um trabalho de Saussure sobre os Vedas indianos em que constata a mesma regularidade de repetições fônicas. O anagrama que perpassava o saturnino e o hexâmetro também se manifesta na literatura sagrada indiana com o mesmo rigor e frequência.

         Sempre movido pela preocupação da regularidade, Saussure introduz os termos monófono, dífono, trífono e polífono. A regularidade passa a ser não o monófono, fonema isolado que se repete, mas o dífono, pares de fonemas que se repetem. O dífono é mesmo, segundo o autor, a unidade mínima... (STAROBINSKI, 1974, p. 35). Seria ele a unidade mínima do anagrama de números pares de fonemas.

         O dífono é um par de fonemas da palavra-tema que pode aparecer contínua ou descontinuamente no termo. O trífono é composto de um dífono, mais um fonema. O monófono pode ocorrer, mas não é a primeira unidade, é uma subunidade. O polífono é um conjunto de mais de três fonemas da palavra-tema, ocorrendo num vocábulo ou em vocábulos contínuos.

         Como exemplos do que acima teorizei, podem ser citadas as ocorrências que se seguem: em peritus tem-se o dífono ri e o trífono ri-s, sendo o s um monófono, dentro do trífono. O monófono pode seguir o dífono, como no exemplo acima ou pode precedê-lo, como no caso seguinte: em fervida tem-se o trífono r-id composto do monófono r e do dífono id.

         Na sua teoria anagramática, Saussure apresenta também outros dois elementos que são locus princeps e manequim. Esses termos têm a mesma significação na teoria saussuriana. O primeiro é substituído pelo segundo.

         A expressão latina locus princeps, literalmente, significa lugar príncipe, ou seja, um lugar privilegiado no poema onde o nome do herói se manifesta. Num de seus cadernos aparece o que segue:

Toda peça bem composta deve apresentar, para cada um dos nomes importantes que alimentam o hipograma, um locus princeps: uma série de palavras, estreita e delimitável, que se pode designar como o lugar especialmente destinado a este nome. Isto sem prejuízo de qualquer hipograma mais extenso, e consequentemente mais disperso, que pode correr e que corre em geral, através do conjunto da peça, paralelamente ao hipograma condensado (STAROBINSKI, 1974, p. 37).

         Assim, o locus princeps é o lugar privilegiado em que aparece cada palavra-tema dentro do poema. É um conjunto de palavras mais ou menos próximas fisicamente em que se manifesta o nome do herói. Para demonstrar essa constância, analisa o autor um vaticínio religioso que aparece na obra de Tito Lívio, Res Romanae ab Urbe Condita, o qual, numa tradução livre, seria História Romana desde a Fundação da Cidade.

         Outro tema que Saussure abordou, mesmo que brevemente, é a questão da origem dos anagramas. No segundo cahier de notes préliminaires, ele analisa o anagrama na epopeia grega. A primeira hipótese a esse respeito lançada pelo estudioso é de que haveria laços da analogia com as religiões primitivas. Diz ele:

A razão pode ter residido na ideia religiosa de que uma invocação, uma prece, um hino, só produzia efeito com a condição de misturar as sílabas do nome divino ao texto (STAROBINSKI, 1974, p. 42).

         A observação saussuriana tem fundamento histórico, pois os cultos sagrados da antiguidade estavam relacionados com a forma linguística. Os primeiros estudos linguísticos realizados na antiga Índia tinham o intuito de reconstituir o texto sagrado na sua forma original, bem como de dar condições para que suas palavras fossem pronunciadas corretamente, pois, caso contrário, o texto não teria o efeito desejado.

         Exemplo disso na cultura ocidental é a missa em latim. O sacerdote tinha de pronunciar pausadamente a fórmula latina da consagração, pois erro de pronúncia ou omissão de qualquer termo implicaria nulidade do ato, isto é, o pão e o vinho não se converteriam respectivamente no corpo e no sangue de Jesus Cristo.

         Nos cultos eleussinos, realizados em Elêussis, pequeno bairro ateniense, onde os nobres gregos eram iniciados nos ofícios sagrados, havia fórmulas religiosas de significado hermético que eram pronunciadas nos atos religiosos.

         Demóstenes, em seu famoso discurso A Oração da Coroa, pronunciado contra seu adversário político e orador, Ésquines,  orgulha-se de participar desses cultos, citando a fórmula: ¢Auoή,  ¢Euoή (DEMÓSTENES, 1965, p. 48).

         A seguir, Saussure levanta outra hipótese de ordem puramente poética da existência dos anagramas: A razão pode ter sido não religiosa e puramente poética: da mesma ordem que aquela que preside aliás as rimas, as assonâncias, etc. (STAROBINSKI, 1974,  p. 46).

         Em favor dessa proposta, poder-se-iam apresentar os exemplos dos poetas populares que seguem certos princípios poéticos, como a métrica e a rima sem jamais terem tido contato com teorias da poética.

         Embora Saussure tenha admitido influências religiosas no processo anagramático, não quer dizer que acreditasse num princípio místico que regesse a composição poética, como um processo emancionista que estivesse por trás da produção dos poemas. Fazia alusão à crença que o poeta, ao compor sua obra, poderia ter sobre esse processo de origem religiosa. Não se trata aqui de uma crença do autor genebrino de que algo de místico envolve o sistema poético.

         O autor acredita que, entre alguns povos, como os romanos, leitores e ouvintes sabiam da existência do que ele chama também de palavra subposta, isto é, colocada por baixo, mesmo quando um poema comporta uma pluralidade de palavras-temas.

         Por fim, Saussure vai à procura de provas que confirmem sua teoria. Um dos argumentos relevantes em favor do anagrama é que Virgílio, percebendo o anagrama na obra de Homero como um instrumento forte para a poética, não quis que sua obra fosse inferior à do mestre e, portanto, usou do mesmo processo em seus poemas.

         Afirma ainda que
mais de um poeta francês confessou que a rima não somente o incomodava, mas o guiava  e inspirava, e dá-se exatamente o mesmo a respeito do anagrama (STAROBINSKI, 1974 p. 86).

         Isso significa que o anagrama seria um instrumento como a métrica, da mesma maneira que limita o poeta, dá-lhe também um instrumento de criatividade.

         Por mais que argumente, Saussure não consegue provar sua teoria dos anagramas. Por isso não a publicou. Levanta muitas hipóteses em favor e contra os princípios que enuncia e acaba sem uma conclusão que o deixe satisfeito.

         Starobinski se pergunta se não seria o próprio Saussure que, na busca de invariantes, as teria encontrado nos poemas, sem que disso se dessem conta os compositores ao produzir seus textos. Estas são suas afirmações:
 ... não partiria ele da decisão de Saussure de ler a poesia de Virgílio e de Homero como linguista e foneticista? Economista, ele aí teria decifrado sistemas de trocas; psicanalista, uma rede de símbolos do inconsciente. Não encontramos senão aquilo que procuramos, e Saussure procurou uma restrição fonética acrescentada à métrica tradicional do verso. Faltaria verificar se aquilo que ele procurou e achou, lendo os poetas antigos, corresponde a uma regra consciente seguida por eles (STAROBINSKI, 1974, p. 86).

         No texto seguinte, de uma carta a destinatário desconhecido, aparece mais fortemente sua dúvida quanto à consistência dos princípios anagramáticos:

Quando um primeiro anagrama surge, parece ser uma luz. Depois quando se vê que se pode acrescentar-lhe um segundo, terceiro, um quarto é que, longe de nos sentirmos aliviados de todas as dúvidas, começamos a não ter mais confiança absoluta no primeiro: porque chegamos a perguntar-nos se não poderíamos encontrar definitivamente todas as palavras possíveis em cada texto, ou até que ponto, aquelas que se ofereceram sem que as procurássemos são  verdadeiramente cercadas de garantias características, e implicam uma maior soma de coincidências que as da primeira palavra ou daquela a que não se prestava atenção (STAROBINSKI, 1974,  p. 89).

         Saussure, intrigado com essa espécie de conhecimento secreto, guardado por uma confraria de iniciados, vacila entre a afirmação da existência do hipograma, ou seja, palavra-tema, e sua inexistência. Ainda admite que poetas como Livius, Naevius e outros que compuseram inúmeros cantos religiosos mantivessem o segredo do ofício. Porém, pergunta-se como teriam procedido em relação a essas regras poetas profanos como Ovídio.

         Ainda com o intuito de obter uma comprovação para suas teorias, escreve uma carta ao diretor do Colégio Eton, em outubro de 1908. Buscava informações sobre um ex-professor desse colégio, Thomas Johnson, que teria traduzido para o latim uma série de poemas clássicos gregos, para serem usados como texto de aula. Acontece que Saussure, examinando esses poemas, encontra neles abundantes anagramas.

         Não se tem conhecimento se chegou a postar a carta ou se, em a tendo postado, tivesse recebido alguma resposta. Desejava saber se o referido professor, já falecido em 1908, havia deixado algum estudo sobre a suposta teoria secreta que guiaria os poetas na sua arte. O que se pode constatar é que provavelmente não tenha obtido informações relevantes, caso contrário elas apareceriam em seus textos posteriores.

         Em busca de uma prova externa para seus próprios estudos, ou seja, de alguém que lhe confirmasse a existência dos princípios que lhe pareciam reger a arte poética, em 19 de março de 1909, escreveu uma carta ao poeta  Giovani Pascoli, então professor da Universidade de Bolonha.

         Pascoli respondeu-lhe, certamente, embora essa carta-resposta não tenha sido encontrada no material deixado pelo linguista, pois Saussure envia-lhe segunda correspondência, em que lhe remete alguns exemplos de sua tese.

         Na segunda carta a Pascoli, afirma:

Há qualquer coisa de decepcionante no problema que propõem porque o número de exemplos não pode servir para verificar a intenção que pôde presidir o fato. Ao contrário, quanto mais o número dos exemplos se torna considerável, mais motivo existe para pensar que é o jogo natural das possibilidades  sobre as 24 letras do alfabeto que deve produzir quase regularmente essas coincidências (STAROBINSKI, 1974, p. 105).

         Essa afirmação demonstra o quanto o autor duvidava da própria teoria. A dúvida ficava por conta do número limitado de letras do alfabeto, apenas vinte e poucas, variando de idioma para idioma. Tal limitação numérica, portanto, permite esse jogo de construção de palavras-temas por simples leis de probabilidade matemática e possibilidades de combinações.

         A segunda correspondência não foi respondida por Pascoli. Saussure teria, conforme afirma seu aluno Léopold Gautier, interpretado o silêncio do poeta italiano como reprovação de sua teoria e interrompido seus estudos sobre os anagramas.

         Estas observações não visam a confirmar ou refutar a teoria anagramática de Saussure. Trata-se de uma demonstração de sua grande preocupação com a busca de regularidades sob a produção do texto poético. Isso comprova o tipo de raciocínio científico do autor muito próprio do paradigma de ciência de modelo positivo.

BIBLIOGRAFIA:

GRIMAL, Pierre (1966). Dicionario de la mitologia griega y romana. Barcelona: Labor.
SOUZA, Rômulo Augusto (1977). História da literatura latina. Belém: Editora Serviço de Imprensa Universitária.
STAROBINSKI, Jean(1974). As palavras sob as palavras: os anagramas de Ferdinand de Saussure. São Paulo: Perspectiva.
ESTUDO COMPARATIVO ENTRE LÍNGUA INDÍGENA DO SUL DO BRASIL E LÍNGUAS DE ORIGEM EUROPEIA  - TRABALHO APRESENTADO NA UNIVERSIDADE DE ALCALÁ - ESPANHA 



AS RELAÇÕES SUJEITO-PREDICADO-OBJETO NA VOZ MÉDIA: UMA APROXIMAÇÃO ENTRE O IDIOMA INDÍGENA KAINGANG E A LÍNGUA PORTUGUESA
Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara – (FURG) – osc@vetorial.net

1. Introdução
O objetivo desta comunicação é analisar as relações enunciativas entre sujeito, predicado e objeto, na voz média específica do antigo grego e do sânscrito, e demonstrar a presença dessa voz na língua Kaingang, um idioma falado por tribos indígenas do sul do Brasil. Não tem, a voz média, um correspondente formal nessa língua indígena, como, de modo geral, não o tem nas línguas modernas.
Esta primeira exposição atém-se mais especificamente à voz média em si mesma. A segunda exposição vai dedicar-se mais especificamente à voz média nos verbos da língua Kaingang. Já a terceira exposição vai analisar a presença e a função da voz média na narrativa mitológica dos índios kaingangues. 
O que caracteriza o médio é o fato de ele definir o sujeito como interior ao processo, junto com o objeto. O que a identifica é que a ocorrência do sujeito e do objeto, na sua dimensão média, não está apenas entre a voz ativa e a passiva, mas está também entre o sujeito e o mundo. Aponta, portanto, para uma dimensão dêitica.
Voltamo-nos para as línguas indígenas instigados pelo fato de a universidade na
qual trabalhamos ter iniciado um processo de integração com grupos indígenas de nossa região, abrindo os cursos da instituição para formar profissionais oriundos desses povos.
Iniciamos, então, um projeto visando a estudar o idioma dessa tribo e a estabelecer uma relação desse com a língua portuguesa. 
Nosso ponto de partida foi o estudo da voz média porque comungamos com os proponentes de uma teoria que afirma ter sido essa a primeira voz verbal utilizada pela humanidade nos primórdios dos idiomas. 
Partimos de textos já coletados por outros autores fundados na literatura oral. Estamos na fase inicial do projeto. Na fase seguinte, ampliaremos o corpus, coletando textos atuais, uma vez que os indígenas já produzem textos escritos em seu idioma.

2. Aspectos teóricos sobre a voz média
As vozes, ativa e passiva, sob o nome de ação e paixão, já são mencionadas no Órganon de Aristóteles, no livro das Categorias. Algumas vezes, essas categorias são também chamadas de classes.
O termo ação da língua portuguesa provém do verbo latino ago. Do tempo supino actum, originou-se o termo ato e seu correlato ação. Daí surge a relação ativa entre o verbo e o sujeito. Aparece a manifestação e o conceito de sujeito com dupla significação: o sujeito sintático, regendo o predicado, e o sujeito empírico, agindo sobre o mundo e sobre o outro. Nessa voz, o sujeito empírico assume a consciência de sua ação sobre o mundo.
A expressão gramatical passivo/a provém do verbo latino patior. Desse verbo originaram-se os termos paixão e passivo. Dele deriva-se também a concepção de voz passiva, em que o sujeito suporta a ação verbal.
Por outro lado, nesta voz aparece a manifestação da ação do mundo ou do outro sobre o sujeito sintático: aparece a consciência da ação do mundo ou do outro sobre o indivíduo, sujeito empírico. Novamente uma relação dêitica, isto é, entre a linguagem e os fatos do mundo que ela expressa. Essa voz, a passiva, no entanto, tem surgimento posterior à voz média e à ativa na maioria das línguas.
Hoje há estudiosos que se voltam novamente para o estudo da voz média. Alguns afirmam que, no surgimento da linguagem humana, ela foi a voz verbal original (que deu origem às demais), e fundamentam seus postulados nos estudos e análises do surgimento da linguagem na criança, realizados pela Psicologia Experimental.
Segundo os pressupostos de alguns estudos, a criança inicia sua inserção no uso da linguagem não se distinguindo do mundo que a cerca: nem dos objetos, nem dos outros seres humanos. A voz verbal característica da criança nessa fase da aquisição da linguagem seria a voz média. Nós, lingüistas, devemos fazer mais análises dessa fase da aquisição da linguagem para averiguarmos se de fato isso ocorre.
Para filósofos e antropólogos como Sproviero, essa era a voz verbal fundamental nos primórdios do surgimento da linguagem no homem. Na fase inicial da formação do homem que Sproviero denomina de infância da humanidade, o homem não tinha ainda consciência de si e do universo como ontologicamente distintos. Nesse sentido, sobre a voz média, ele afirma:
E o ponto fundamental é a tese desenvolvida pelo pensador alemão Schöfer. Ele é de opinião de que houve uma fase em que havia somente o médio: ativo e passivo seriam análises do médio. O médio indicaria portanto a fase da consciência não destacada do mundo, isto é, o homem e o mundo não se separavam, integravam o mesmo todo e a linguagem exprimia essa relação integral (Idem, ibidem, 1997, p. 3).

De acordo com esse raciocínio, o conceito de voz média está relacionado com a própria evolução do ser humano e ligado à formação histórica da consciência do indivíduo acerca de si próprio, e de suas relações com o mundo que o cerca e de suas relações intersubjetivas de identidade e alteridade.
Na mesma linha de pensamento, a formação da língua latina mantém traços da voz média que se manifestam de modo claro na categoria dos verbos denominados depoentes. Porém, nessa língua, já fica claro o processo de apagamento dessa voz, pois não há nesse idioma uma forma gramatical específica para a expressão dela. Esse processo de apagamento se consuma nas línguas modernas com a extinção total de uma categoria morfológica para marcá-la.
No entanto, como veremos mais adiante, apesar do apagamento morfológico, sempre e em todos os idiomas, como afirma nossa hipótese, se manteve a voz média em sua dimensão semântica. Houve, portanto, um abandono das marcas formais na morfologia dos idiomas, mas a voz média continua existindo pelo menos em alguns verbos de todos os idiomas.
No surgimento das primeiras gramáticas houve um processo de descaminho no tratamento dos idiomas. A gramática do idioma sânscrito de Panini e a gramática grega de Dionísio da Trácia, por razões diferentes, têm caráter fortemente normativo.
Enquanto os sacerdotes indianos estavam preocupados com o efeito sagrado dos rituais, em que um desvio de linguagem podia implicar a nulidade dos efeitos do ato litúrgico; os gregos se preocupavam com o processo de mudança lingüístico, considerando a mudança decorrente da expansão do número de usuários como corrupção da língua.
Desse ponto histórico em diante, cada vez mais o indivíduo passou a pertencer menos à comunidade e mais ao universo, ao império:
O que foi a filosofia, senão um esforço constante para consumar a ponte homem-mundo. Tanto é assim que sempre encontramos uma dificuldade de distinguir homem-mundo e, na dimensão epistemológica, a distinção sujeito/objeto, não excluímos do objeto o próprio eu do sujeito, que está presente em todos os atos do conhecimento: eu me conheço ao conhecer... Já o eu, enquanto sujeito ontológico, se distingue do mundo... (Idem, ibidem, p. 5).

Essa marca de relação sujeito–objeto na ação, segundo algumas correntes da psicologia, desapareceu como uma forma fixa, morfológica, na linguagem, mas permanece no inconsciente e se manifesta na enunciação. 
O filósofo da linguagem Émile Benveniste, em sua obra Problemas de Lingüística Geral, tomo I, desenvolve um artigo intitulado Ativo e médio no verbo, datado de 1950. Nele o autor aborda a particularidade da distinção entre voz ativa e voz medial nas línguas indo-européias, usando o conceito de diátese:
Toda forma verbal finita pertence necessariamente a uma ou outra diátese, e mesmo certas formas nominais do verbo (infinitos, particípios) igualmente se submetem. Equivale a dizer que tempo, modo, pessoa, número têm uma expressão diferente no ativo e no médio. (BENVENISTE, 1976, p. 184).

O filósofo francês não define explicitamente o conceito de diátese. No entanto, a partir da aproximação do campo da Medicina, é possível inferir uma relação entre a posição dele e a que apresentamos aqui. 
No texto de Benveniste o termo diátese é empregado para referir uma predisposição orgânica de alguns indivíduos a certas doenças. Semelhantemente aos organismos humanos, há uma característica imanente dos verbos, que os faz selecionar argumentos de tal forma que, no caso específico da voz média, veicule-se a informação de que o agente verbal efetua algo se afetando direta e concomitantemente. Assim, tem-se como exemplo nascer, verbo cujo significado além do espectro ativo: nascer é, para o sujeito, passar a integrar o mundo e interagir com ele; ainda que, em uma primeira instância, ele não pratique a ação ou controle-a, nascer é uma ação que afeta o sujeito em sua relação com a realidade, no dar-se conta da própria existência.

3. As relações médias entre sujeito, objeto e mundo
Como se pode observar, ao tomar-se como exemplo, no verbo nascer destaca-se o caráter filosófico da re-ligação do homem com o mundo. A categoria “voz” é a diátese fundamental do sujeito no verbo, conforme Benveniste. O homem transforma, modifica o mundo no mesmo instante em que transforma a si próprio: eis o princípio intrínseco à compreensão da voz média. O homem cumpre algo que se cumpre nele (idem, ibidem, p. 188). 
Em seu estudo, Benveniste dedica-se a distinguir as relações entre sujeito e processo na voz média por oposição à voz ativa. Desse modo, o linguista e filósofo destaca que, na voz ativa, os verbos marcam processos que se efetuam a partir do sujeito e fora dele, como em soprar. Tendência distinta se marca na voz média, uma vez que os verbos apontam a processos dos quais o sujeito é a sede e fica, portanto, no interior do processo. Será a transitividade verbal o elemento indispensável à conversão do médio ao ativo.
A voz passiva é compreendida por Benveniste como uma transformação histórica da voz média. O sujeito que primeiramente era visto como atuando no mundo pela intenção de atuar sobre si próprio passa, na voz passiva, a ser atuado pelo mundo. O agente converte-se em paciente.
Uma diferenciação entre duas modalidades de diátese é examinada ao final de Ativo e médio no verbo. Considerando-se a posição ocupada pelo sujeito quanto ao processo expresso pelo verbo, haveria para a voz ativa uma noção de diátese externa, enquanto que para a voz média haveria uma diátese interna. Por conseguinte, a diátese soma-se, na proposta de Benveniste, às categorias de pessoa e de número para delimitar o que chama de campo posicional do sujeito, isto é, o modo como o sujeito situa-se em relação ao processo verbal.
A contribuição deste trabalho de Benveniste está, parece-nos, no fato de que são apresentadas evidências lingüísticas para a compreensão da voz média, ainda que muitos gramáticos tenham-na associado a uma mera marca do interesse do sujeito quanto ao processo. Suportada pela língua, a marca medial supostamente tem seu valor na oposição à voz ativa – oposição esta que fragiliza o princípio de que a voz média se explica pela intervenção de fatores extralingüísticos. O homem está na língua e, assim sendo, o estudo da voz média é mais uma comprovação disso. . 
Voltando à nossa posição inicial, as línguas, desde as antigas, mantêm algumas formas que marcam a voz média, preservando laços dessa relação sujeito-mundo. Exemplo claro e rico dessa voz havia já no latim, nas formas dos verbos depoentes. O interessante é que muitos desses verbos chegaram ao português e fazem-se presentes ainda, embora nosso idioma não tenha, para isso, uma marca morfológica. Vejamos alguns exemplos. 
Verbo depoente é aquele que tem uma forma passiva e significado ativo. Um dos mais usados é loquor, falar. Sempre que falo, falo também para mim mesmo. Ao mesmo tempo em que falo para o outro, sou também destinatário da minha própria fala.
Outro verbo depoente é patior, sofrer, padecer. Há uma profunda dimensão de relação suejito-verbo-objeto expressa por esse verbo, pois a ação de sofrer recai sempre sobre o sujeito que sofre. E sofrer não é sempre sinônimo de padecer, embora essa dimensão sempre acompanhe o processo em sua profundidade. Sofrer transformação pode conter muito de positivo, mas é sempre desalojar-se. Há uma idéia de perda também, portanto.
O verbo patior contém, dentro de um conjunto mais amplo e complexo de significações, o conceito de paixão através do pretérito perfeito (passus sum). Daí se origina o adjetivo passional que evoca duplicidade de apego e dor. Além disso, traz uma dimensão relacional entre sujeito, predicado e duplo objeto, enquanto o sujeito, quando sofre pela dor alheia, tem o outro como objeto indireto (quem sofre, sofre por alguém) e a si mesmo como objeto reflexivo do próprio sofrer, o que faz parte da dimensão depoente do verbo e que não tem marca morfológica na língua portuguesa.
Voltando à língua latina, a forma verbal meditari é morfologicamente passiva, mas com dimensão média. Não se trata da forma ativa meditare, que já contém uma dimensão média, mas a passiva meditari manifesta uma relação medial mais intensa, pois a voz média não está apenas no meio entre a passiva e a ativa, mas está no meio entre o sujeito e o mundo. A predicação de meditari é meditar-se a si mesmo enquanto inserido no mundo.
Estas formas de manifestação da voz média não permanecem exclusivas à linguagem filosófica, nem são características apenas das línguas clássicas. Pelo contrário, estão presentes na linguagem de todo dia, em muitos tipos de expressões, como também fazem parte dos textos literários. 
Um exemplo claro do português do Brasil, na linguagem coloquial, é o dativo ético, em que aparecem expressões como Me morreu o gato, Agora me acontece mais essa ou Não é que ela me foi embora. Essas expressões mostram claramente a presença da voz média em nosso idioma. A diátese verbal, na mesma medida em que atinge o objeto, afeta concomitante o sujeito. 
Em Me morreu o gato, como nos demais exemplos, está clara a afetação do sujeito pela relação do predicado com o objeto. Não são, porém, apenas marcas negativas de perda. Podem ocorrer situações em que o sujeito recebe da relação verbo objeto, uma afetação de carga positiva, como é o caso do exemplo a seguir: Não é que ele me ganha o prêmio.
Ampliando o corpus de pesquisa, nosso grupo agora, em estudos que se encontram ainda em fase preliminar, constata que também na língua kaingang ocorre um processo semelhante no que tange à voz média. 
Tomamos o léxico e sentenças da língua Kaingang e investigamos neles a voz média. Atualmente, estamos ampliando o corpus de textos com a finalidade de aprofundar nossas pesquisas. O processo é lento devido à distância entre nossa universidade e as comunidades indígenas, bem como, devido a uma resistência inicial dos indivíduos, provocada pelos conflitos históricos do processo civilizatório, em narrar mitos ligados a sua cultura. 
Na fase inicial de estudos em que nos encontramos, tudo aponta para uma grande semelhança com o que ocorre nas línguas européias em geral. Como na língua diátese interna manifesta a própria essência epistemológica do ser humano que não se pode distanciar do mundo que observa, descreve e analisa, pois é indissociável dele.
Essa separação é apenas ontológica: olhar para o homem sujeito dissociado do universo, objeto da observação, é apenas um processo didático. Homem, universo e linguagem fazem parte de um todo que só pode ser concebido numa visão apodítica universal.
Em kaingang também existem verbos que, pela própria diátese interna, são médios, isto é, têm como objeto o mesmo referente do sujeito. Analisamos verbos como mur ou munmur (nascer), mỹ kaga (sofrer, padecer) gỹm ke (morrer, apagar), fénhféj (brotar), kagãg (adoecer), os quais claramente manifestam a voz média.
Em mur, a ação de nascer parte de sujeito e recai sobre ele. Sobre o sujeito que nasce recai a ação do próprio nascer. O mesmo ocorre com os demais verbos acima relacionados: as ações de sofrer em mỹ kaga, de morrer, apagar em gỹm ke, de brotar em  fénhféj e de adoecer em kagãg são exemplos que deixam evidente que também na língua indígena ocorre o mesmo fenômeno, o mesmo processa das línguas européias. Esses verbos contêm, em sua dimensão semântica, a diátese média, isto é, são médios por sua própria natureza sintático-semântica.

4. Conclusão
A análise acima parece permitir-nos concluir que a voz média faz parte da estrutura profunda de todos os idiomas. Parece pertencer à diátese específica de alguns verbos que em sua dimensão semântico-formal estão ligados a fenômenos fundamentais ligados à própria existência humana e ao desenvolvimento da nossa espécie no processo histórico que nos formou e nos caracteriza.
É, portanto, relevante investigar mais profundamente a presença e o desenvolvimento da voz média na linguagem dos indígenas de hoje, na região sul do Brasil. Isso permitirá um entendimento mais profundo da linguagem e do próprio homem.



Referências bibliográficas
BENVENISTE(1976), Émile. Ativo e médio no verbo. In: Problemas de Lingüística Geral. Tomo I. São Paulo: Ed. Nacional, Ed. da Universidade de São Paulo.
CAMACHO(2008), Roberto Gomes.Em defesa da categoria de voz média no português. In: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010244502003000100004&lng=en&nrm=iso&tlng=ptAcesso em 10/8/2008.
MIRA MATEUS(2003), Maria Helena et. al. Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho.
SPROVIERO(2008), Mário Bruno. Linguagem e consciência: a voz média. In: http://www.hottopos.com/mirand3/linguage.htm. . Acesso em 10/8/2008.

CIÊNCIA, FILOSOFIA E LINGUAGEM - SCIENCE, PHILOSOPHY AND LANGUAGE

Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
         A ciência sempre procurou invariantes para os paradigmas que propôs a fim de orientar a tecnologia. Para isso, recorreu sempre a modelos filosóficos de sustentação.

         Os gregos parece terem sido os primeiros povos a organizar o pensamento lógico. Começaram esse processo que  sucedeu os mitos a partir de uma grande aporia, ou seja, um conflito entre duas propostas teóricas opostas.

         Assim, enquanto Parmênides defende uma filosofia das essências, Heráclito apresenta o princípio da constante e eterna mudança. Platão e Aristóteles, cada um a seu modo propõem suas soluções ao impasse.

         Platão propõe a existência de dois mundos paralelos: de um lado, as ideias puras e únicas, ou seja: haveria uma única ideia pura e perfeita de cada realidade, junto ao grande demiurgo, cujos modelos habitariam o mais íntimo do espírito humano; a pluralidade do mundo real, por seu lado, teria como modelo o  mundo das ideias perfeitas, sendo, porém, sempre imperfeita e a caminho da perfeição inatingível. Toda a investigação filosófica e científica deveria voltar-se para o interior do espírito em que estariam inatos os paradigmas da ciência e de todo o saber.

         Em oposição ao mestre, Aristóteles acreditava numa ciência de base totalmente empírica. Todo o saber partiria da observação. O espírito humano, sem nenhum saber inato, constataria regularidades no mundo dos fenômenos. Dessa observação surgiriam as invariantes das regularidades constatadas. Haveria uma ciência eternamente provisória, porque dependente de novos fenômenos que poderiam levar a novas constantes.

         Esses raciocínios revelam a eterna busca por parte dos pensadores de princípios e paradigmas universais, quer apoiados na lógica do mundo interior do espírito, quer apoiados nas constatações da regularidade dos fenômenos do mundo exterior. Porém, todos creem em uma verdade possível e certa, que levaria o pensador à segurança de uma certeza.

         Parece, no entanto, que, em termos absolutos, ambas as correntes fracassaram. O eterno paradigma do discurso sempre relativo da simbologia do mito, constantemente polissêmico, por isso mesmo menos radical e inflexível, aponta para um tatear mais constante e menos fugaz.

         Em sua relatividade, afasta-se de moldes que conduzem à opressão e exploração. Os modelos filosóficos da totalidade, como os de Platão, Aristóteles, Frege e Tomás de Aquino serviram de base  também para sistemas políticos e organizações sociológicas e religiosas que, no mais das vezes, serviram a ideais pouco nobres.

         O último sistema filosófico da totalidade, isto é, que tenta dar conta de todos os fenômenos foi proposto por Hegel. Esse ruiu, quando Schelling, lecionando na Universidade de Munique, expôs, com clareza incomparável, o erro fundamental do sistema absoluto de Hegel. Esse, totalmente imanente, em sua dialética, não se sustinha, por carecer-lhe a dimensão transcendente que será abordada mais adiante. Assim, caiu em ruínas o maior sistema filosófico dos últimos tempos.

         Depois de Hegel, apenas o existencialismo constituiu uma grande corrente filosófica, mas nunca quis ser um sistema. O maior de todos os existencialistas, Martin Heidegger, procura determinar o sentido do ser de  maneira pré-categorial. Heidegger procura o sentido do ser pré-categorial na existência, que não é categoria determinada, mas vivência. O existencialismo queria ser filosofia sem ser sistema, sendo assim um lirismo pseudofilosófico.

         Nesse vácuo filosófico,  surge a neo-escolástica. Aos poucos, procurou diálogo com a filosofia pós-medieval. É uma nova tentativa de tratar a filosofia como sistema. De acordo com um de seus ideólogos, Carlos Cirne Lima:

O realismo dialético não é, dessarte, nada de novo, mas apenas a tentativa de uma síntese entre o Neotomismo e a filosofia moderna (CIRNE  LIMA, 1967, p.5).

         Na introdução de sua obra, Cirne Lima parte da questão que orientou toda a filosofia, desde os primórdios do homem:
Nasceu a filosofia, com a pergunta, profundamente humana, acerca do princípio último e uno das coisas diversas, que rodeiam o homem no mundo, em que, ele só, vive, como homem, perguntando o porquê das coisas. É a velha pergunta dos gregos acerca da ἀρχή (último princípio), da qual se origina a definição de filosofia. Filosofia é a ciência que estuda o último (ἀρχή) dos seres(CIRNE  LIMA, 1967, p. 7).

         Os gregos se perguntavam qual seria esse princípio  e muitas respostas surgiram. Para uns, seria a água, para outros, o ar, a terra ou o fogo e assim por diante. Assim, os primeiros grandes investigadores da Grécia antiga escreveram suas obras com um título comum: Περί Φύσεως (Sobre a Natureza). Dessa forma, os seres são reduzidos a um último princípio que é também um ser-objeto. Sendo um ser, nem mais inteligível, nem mais necessário do que os outros seres, precisa também ele de um princípio que o explique.

          Mais adiante, Cirne Lima afirma:

... um princípio, determinado de modo idêntico ao dos seres, dos quais é princípio, não pode ser princípio último (CIRNE LIMA, 1967, p. 7). Para ser princípio último, deve apresentar uma inteligibilidade superior à dos seres dos quais é princípio. O atomismo grego e, consequentemente, o modelo atômico de nossa física moderna representam o apogeu de um modo de pensar, que, com E. Heintel, chamamos de razão ôntica ou empírica. Os seres são explicitados por princípios determinados de maneira idêntica à dos seres, mas mais inteligíveis; no caso presente, os átomos. O triunfo das ciências físicas, em nossos dias, baseia-se, essencialmente, nisso, na maior inteligibilidade do princípio (Idem, ibidem, p.8).

         Tal princípio, entretanto, explica o extenso pelo extenso, o visível pelo visível (em macro ou microvisibilidade), o material pelo material. Mas qual o princípio do inextenso, do invisível, do imaterial? Qual o sentido das palavras que usamos? Qual o princípio da relação matemática  2 + 2 = 4, relação essa que em si não é nem extensa, nem visível, nem material?

O físico, para contentar-se com o modelo atômico como último princípio, deve abandonar toda e qualquer fundamentação da matemática, sim a matemática mesma. Pois, sendo esta inextensa, invisível, imaterial, foge ao modelo atômico. Se o atomismo da física moderna fosse o último princípio, se a física fosse filosofia, a matemática não poderia existir (Idem, ibidem, p. 11).

         Essas afirmações levam-nos a concluir que o último princípio não pode jamais ser determinado por qualquer determinante. O último princípio é indeterminado e indeterminável. Segundo o filósofo Cirne Lima, somente uma definição tautológica pode dar conta do último princípio: “O último princípio é o último princípio” (Idem, ibidem, p. 8). Estaria, assim, destruída a possibilidade de qualquer filosofia, haveria uma pluralidade de ciências sem nenhuma possibilidade de achar-se um princípio de unidade. Chegamos, assim, a um paradoxo.

         Porém, se chegarmos à indeterminação do único princípio, teremos como implicação a indeterminação de tudo o mais. Chegamos, pois, a uma aporia. De um lado, a aparente evidência de que o último princípio é indeterminável. De outro, temos a nossa fala humana. Ela tem um sentido determinado. Essa aporia pode e deve ser resolvida. A existência do determinado, a palavra, implica, como condição necessária de sua possibilidade, a possibilidade de determinação do primeiro princípio.

         Para a solução desse impasse, o neotomismo ou neo-escolástica propõe a analogia do ser, a chamada analogia entis que pode ser definida conforme conceito abaixo:

Análogo, portanto, é o conceito, que é predicado de vários sujeitos segundo uma razão, que é, simultaneamente, a mesma e diversa. Ao predicar, portanto, o ser da substância e do acidente, do existente e do possível, razão predicada não é, simplesmente, a mesma, nem tampouco, diversa, mas simultaneamente, a mesma e diversa. Identidade e não-identidade são a razão, segundo a qual o análogo é predicado. Encontramo-nos, parece, face à última síntese, que concilia o uno e o múltiplo, o Absoluto e o relativo. Um exame mais cuidadoso desfaz essa ilusão. Não se trata de uma síntese, e sim de uma aporia. Pois, essa definição de analogia pressupõe, necessariamente, uma contradição. Segundo esse conceito de analogia, o ser é, sempre, não ser (Idem, ibidem, p. 11).

         O que existiria de fato é uma dualidade de aspectos: sob um aspecto, a razão é a mesma; sob outro, ela é diversa, pois nada pode ser, sob o mesmo aspecto, idêntico e diverso. Continua Cirne Lima:

O aspecto sob o qual a razão é a mesma é, pura e simplesmente, um conceito unívoco. Há aqui, identidade, sem nenhuma diversidade. O aspecto sob o qual a razão é diversa, é puro equívoco (Idem, ibidem, p. 12).

         Porém, nessa dualidade de aspectos constrói-se um novo unívoco. Fica assim destruída a essência da analogia. Nesse conceito unívoco não há diversidade nenhuma. Essa seria uma razão ainda ontológica. É, no entanto, a razão transcendental que evita a contradição sem fazer, entretanto, que o conceito análogo se torne unívoco. A razão transcendental é aquela que contém dentro de si identidade e diversidade.

         A analogia implica uma razão que é sob o mesmo aspecto idêntica e diversa. Segundo Cirne Lima:

A razão transcendental é aquela que contém, dentro de si, identidade e diversidade. A razão transcendental se desdobra sempre, dentro de si, na pluralidade do mesmo e do outro. Identidade e diversidade não podem ser separadas e consideradas, cada uma, de per si, sem que se perca a razão transcendental, sempre são predicadas, simultaneamente, identidade e diversidade(Idem, ibidem, p. 56).

         Há uma definição clássica de analogia, em latim, segundo a qual  é qui dicitur de pluribus secundum rationem simul eandem et diversam (o que é dito de muitas coisas segundo uma razão igual e diversa.) (Idem, ibidem, p. 56)[1]. Na razão ontológica, essa definição abriga uma contradição, porém, na razão transcendental essa aporia se resolve.

         Quando os neotomistas falam de predicação, entendem-na como a maneira de vincular um conceito a uma realidade através da linguagem.  E por razão entendem-na como um modo de predicação. Nessa acepção filosófica, há três maneiras de predicação. Primeiramente, a predicação por identidade. Por exemplo: isto é pedra. É também chamada de predicação linear.

         O segundo modo de predicação é feito por oposição. É razão ontológica. Afirma-se a essência de um ser em oposição aos outros. Este ser é o que os outros não são. Seria exemplo dessa forma de predicação a seguinte afirmação: o homem não é macaco.

         E, por fim, há o terceiro modo de predicação que contempla o princípio de identidade e de oposição em sua identidade e sua diversidade que é a razão transcendental. A transcendência é a síntese de Hegel em sua dialética, porém superada.

         Enquanto, para Hegel, a síntese é intelectual, para os neo-escolásticos, não há confusão entre conceito e realidade. Sua identidade e oposição são superadas pela transcendência. Toda frase é uma síntese entre um sujeito e um predicado, um sujeito particular e um predicado universal. A razão transcendental identifica o sujeito como sujeito e o predicado como predicado. A frase não é a soma de sujeito e predicado, mas garante a oposição entre sujeito e predicado.

         Quero ressaltar que o termo transcendência, no sentido em que está aqui empregado, não tem o significado religioso, que a considera como a superação da condição humana e passagem para o nível sobrenatural.

         Neste texto, a transcendência consiste numa superação de nível em que a dialética é superada. Quando a dialética fica apenas na imanência, isola-se do mundo concreto, e permanece apenas no nível teórico. Os exemplos que serão apresentados a seguir, no que diz respeito à palavra e à frase, elucidarão melhor a questão.

         Nessa mesma dimensão, o discurso, como cada uma de suas partes, é polissêmico. Nenhuma palavra, nenhuma sílaba, nenhum fonema é por si mesmo unívoco e em razão de si mesmo. A possibilidade da polissemia não está, também, na equivocidade. Nada é diverso em razão de si mesmo. Nem é diverso em razão, apenas, dos outros. A possibilidade da polissemia está na síntese, na analogia e não apenas na dialética da oposição de contrários.

         Assim, o fonema e o sentido, enquanto idênticos a si mesmos e opostos um ao outro, não se compreendem senão na palavra. A palavra, que é síntese de fonema e sentido, não é apenas fonema, não é apenas sentido, nem é a soma de fonema e sentido, nem é resultado de um e do outro ou de ambos juntos.

         A palavra, enquanto síntese, é anterior, imanente e posterior a ambos. É ela que opõe a ambos e os supera. Não compreenderemos fonema ou sentido senão na palavra e pela palavra. A palavra como síntese não é um fenômeno empírico (captável pelos órgãos sensoriais), nem é um fenômeno antológico (captável enquanto oposição aos outros fenômenos), mas é um fenômeno transcendental (que se capta como síntese e como possibilidade de ser do empírico e do ontológico).

         Assim, sujeito e predicado só se compreendem na e pela frase. Sensação e conceito só se compreendem no e pelo juízo. As frases e cada frase só se compreendem no e pelo discurso. Do mesmo modo, o texto, no contexto. Assim, as palavras, no silêncio. Assim, os fonemas, na sílaba.
         
                 Nessa articulação em que se constrói o sentido, há sempre um predicado que se atribui a um nome, predica o nome. Esse predicar significa atribuir-se a si próprio, com tudo o que é, ao nome. Mas essa se constitui uma predicação sempre nova, porque a cada circunstância o mesmo predicado se reveste da realidade desse novo acontecer e o atribui ao nome, que, em mesmo sendo uma repetição do mesmo ser, está em nova circunstância, e nesse eterno reviver constroem a re-presentação do eterno vir-a-ser de cada homem e dos homens todos em cada fato e na história inteira.

             O sujeito, por sua vez, assujeita o predicado, ou seja, impõe-lhe uma pessoa, a pessoa de que se reveste o nome e dá-lhe uma identidade sempre nova a cada frase em sua singularidade ou pluralidade circunstancial e plena. Por isso e somente por isso a circiunstância exige que o sentido seja polissêmico, pois a história não se repete, perdendo-se  os fatos na finitude do tempo, irrecuperavelmente. A recuperação do fato pode dar-se parcialmente pela narrativa. Porém, a narrativa jamais recupera o fato em si mesmo. Reproduz simplesmente a reinterpretação de um sujeito que narra. Toda a linguagem é predicação e assujeitamento realizadas a um tempo na mente do indivíduo que fala para outro que escuta e reconstrói a seu modo e a partir de sua história a sua interpretação.

           Mas essa relação somente vai tomando sentido no nível imediatamente acima. A frase busca seu sentido no texto. O texto em determinada cultura. A cultura na história. E dessa forma é no grande conjunto em que o Ser envolve tudo é que emerge o sentido de cada unidade.

         Desse modo, a infinita polissemia do discurso e de cada uma de suas partes, está na analogia, isto é, na força criadora, na impressionante negatividade do espírito, que nos faz ver que nada é aquilo que é, mas que tudo é outra coisa daquilo que é, não apenas porque queremos que assim seja, mas porque o Ser se mostra de muitos modos, e a epifania do sentido não cabe, não se esgota no quadriculado espaço do unívoco ou apenas do equívoco.

         A dialética, em sua dinâmica analética, não está apenas no pensamento ou na palavra. Ela é a alma da realidade, do pensar, do falar e do agir. Impossível compreender a linguagem e o discurso senão dialética e analeticamente. Isso leva-nos a concluir que o discurso é, efetivamente, relativo.

         O sujeito não é determinado como sujeito do fazer pelo predicado, sendo-lhe oposto; nem o predicado é determinado pelo sujeito. A oposição mútua não resulta de um deles sobre o outro, nem da soma deles, mas de sua superação enquanto membros da frase. É a frase que os faz idênticos a si mesmos e opostos um ao outro. A frase é a razão transcendental. A frase também tem como sua razão transcendental um texto. Da mesma forma, o texto tem como razão transcendental um discurso, e o discurso, uma cultura.

         A partir daí chega-se ao discurso que, nesta perspectiva, como cada uma de suas partes, é polissêmico. Nada é unívoco. Nenhuma palavra, nenhuma sílaba, nenhum fonema é, por si mesmo, unívoco e em razão de si mesmo. A razão da polissemia não está também na equivocidade. Nada é diverso em razão de si mesmo, nem é diverso em razão, apenas, dos outros. A possibilidade da polissemia está na síntese, na analogia e não na dialética da oposição entre contrários.

         A analogia é precisamente a dialética da razão transcendental que ousaria chamar aqui de transdialética. Uma superação da dialética hegeliana que dá conta dos conflitos das aporias e permite entender o contraditório e dá sentido ao equívoco, pois esse equívoco só pode ser entendido a partir de um olhar do todo que supõe uma visão transcendental. É o ponto de partida de onde os opostos são vistos como opostos num conjunto.

         A polissemia do discurso, ou equivocidade, não pode ser compreendida enquanto determinada pelo sujeito que fala ou escreve ou pelo outro que está compreendido no sujeito que fala (social ou histórico). A significação do discurso entre dois sujeitos só pode ser compreendida como polissêmica porque esses dois sujeitos são superados, não um pelo outro, não pela soma de suas compreensões, mas pela exigência de alteridade que o rosto do outro nos revela e impõe. A polissemia é analógica e não apenas dialética. A possibilidade analética está na alteridade interpretada não apenas social, econômica, culturalmente, mas metafisicamente.

BIBLIOGRAFIA

CIRNE LIMA, Carlos (1967). Realismo e dialética: a analogia como dialética do realismo. Porto.Alegre: Globo.
REALE, Giovanni (1994). História da filosofia antiga. São Paulo: Loyola.
MITO E FÁBULA – O ABSOLUTO E O RELATIVO

 Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara

                                                                                     Aos desatentos, o simples parece uniforme, a uniformidade causa tédio
 e os entediados
 só veem monotonia ao seu redor 
(Martin Heidegger). 



    Desejo que este blog se inscreva na linha do mito, da fábula, que estão fora do tempo ou, pensando melhor, inscrevem-se em certo tempo primordial, no qual os procedimentos humanos não eram iguais aos de hoje. Essa inserção remete todos os ditos para outra dimensão, em que a palavra evoca, em cada destinatário, ora o sentido que ele procura, ora o que sua acuidade permite, ora ainda, o que a sua obtusidade veda. E na infinita polissemia do universo dos símbolos, das metáforas e narrativas, cuja imagem acústica, em sendo sempre a mesma, viaja pelos insondáveis universos do espírito dos indivíduos, desvelando portentos e remetendo ao insuspeitável, procuro sugerir, para não doutrinar.
    Conta uma antiga fábula que, havendo um conflito generalizado na floresta, toda a ordem estava por desestabelecer-se. O leão, que era o rei da floresta, devorava muitos de seus súbditos. E, a partir desse abuso de poder, outras rupturas se seguiram: a abelha atacava os bois e cavalos, as moscas, os cães; o porco emporcalhava as águas do lago, o macaco roubava a comida das raposas, e assim por diante. Enfim, a vida na floresta tornara-se insuportável. 
    Júpiter, o deus dos deuses, em sua infinita sapiência, atendendo aos apelos gerais, instituiu um novo rei. Ordenou a Mercúrio, seu mensageiro, que jogasse um enorme tronco no meio do pântano. Imediatamente comunicou a todos que não se aproximassem do supremo mandatário, que tinha poderes para fulminar todo o que fosse apanhado a menos de mil metros de seu leito de folhas macias. Que todos voltassem aos antigos princípios, pois, caso contrário, as tropas do novo potentado silencioso puniriam os infratores com castigos inimagináveis. Não é preciso detalhar o que se passou desde então. Poderíamos resumir tudo em uma cena quase grotesca em que o leão aparece, silenciosamente, trincando uma maçã, com um enorme feixe de capim sob o braço esquerdo. 
   Pois ocorre que, num país muito distante, diferentemente do que acontece em nossos tempos, sucedeu fato semelhante. Havia aí o costume muito elogiável de se escolherem, para ocupar o poder, apenas as pessoas cuja vida pregressa fosse marcada pela sensatez de seus atos. Como na floresta da fábula, também na terra sem nome, de há muito, o crime e a corrupção haviam-se tornado a regra, de tal maneira que, ser honesto era caso de chacota. 
   O mandante supremo, na ocasião, sensato como de costume, ordenou que se disseminassem lâmpadas vermelhas por toda parte, de tal forma que ninguém estivesse fora do alcance de uma delas. Elas seriam as guardiãs da lei e da ordem. Ao ser alertado por um assessor solícito sobre a inocuidade da medida, uma vez que as lâmpadas não possuíam poder algum, respondeu: 
    “Elas servem apenas como um sinal dos tempos, para que todos, antes de agir, olhem para a lâmpada de suas consciências. O de que necessitamos não é de truculência, mas sim de um processo educativo eficiente, que produza pessoas sensatas, colaborativas, desarmadas de espírito e capazes de entender apenas ao apelo simples da própria consciência. A educação deve ensinar a cada indivíduo a ler os sinais dos tempos, próprios de cada momento. A ciência e a tecnologia são importantíssimas para o progresso e a manutenção dos corpos. Mas, unicamente elas, são insuficientes para a construção de um país saudável. Quem souber ler esses sinais, sabe como proceder em cada situação que a existência falaz lhe apresenta. A educação humanística dos espíritos é o instrumento eficiente para formar o cidadão fraterno. É esse processo que conduz à formação do cidadão, despido de um discurso absoluto, pleno de certezas. Emerge o ser que busca o novo, o inusitado. A prepotência de se instituir uma palavra absoluta, absolutamente estabelecida e definida, é, em si mesma, a negação total do diálogo, a condenação da dialética.” 
    Se olharmos para a proposta do administrador anônimo, perceberemos que ele propõe um modelo de postura educacional que se opõe a um tipo de discurso absolutizante da voz oficial como infalível. Esse discurso absolutista é o representante indiscutível de uma pseudociência, que transforma um discurso determinado em infalível, naquilo que ele quer dizer, confundido-o com aquilo que ele deve dizer em nome de um sistema. 
    Por fim, esse discurso se confunde com a própria palavra divina, como se o mesmo Deus estivesse falando, o que se configura como idolatria, confluindo para uma postura que impede, nega e proíbe ao ouvinte, de ouvir; e nega também a liberdade do falante, de falar. 
    A prepotência da palavra absoluta, cuja base é o pensamento indo-europeu, precipuamente o manifesto em certas vertentes da filosofia grega, negou a possibilidade do feminino; negou a condição humana para o negro e para o índio, enquanto defendeu a escravidão que, sob certas máscaras, ainda permanece. Erigiu em absoluto o que é essencialmente relativo. Fetichizou-o, negando, assim, a possibilidade sempre nova e surpreendente da manifestação do Absoluto. A prepotência da palavra absoluta, a pretexto de sacralizar, divinizar alguns espaços, alguns tempos e algumas pessoas, acabou negando, para todos, a possibilidade dialogal do encontro. 
   Para o indo-europeu, pastor, a cavalo, o primeiro a descobrir e utilizar o ferro, ser homem é ser dono, proprietário, dominus. O homem masculino, e somente ele, é o proprietário da terra, dos animais, da família; consequentemente da mulher e dos filhos, dos outros homens, que, por direito, são seus escravos. Surge seu protótipo mais perfeito, o paterfamilias romano, que se torna o arquétipo do homem no mundo ocidental.
    E chega ao cúmulo de se tornar dono do próprio Deus (o ar luminoso, Zeus), sinônimo de dia, que lhe serve de meio e condição para ser dominus e controlar sua propriedade. É dono de Deus, ora pelo exercício ritual de poderes mágicos, ora através da racionalidade, para explicar física e racionalmente o mundo e o universo. 
   Todo aquele que ingressa na propriedade, que é o âmbito do homem, se torna inimigo e ladrão. E essa invasão se faz, ora através da guerra, ora através da lógica: os dois elementos essenciais que compõem a substância do império contra a colônia, que é, para o indo-europeu, a única forma de ser homem. Embevecido pelo poder mágico-operativo da linguagem, o indo-europeu faz dela a arma do domínio absoluto de tudo, porque seu discurso é lógico ou científico. Esse poder da palavra faz desse homem sem nome, escondido por trás das paredes dos gabinetes, dono da natureza, dos outros, de si e do Fundamento.   
   Essas são as consequências práticas do modelo absoluto de ciência, que se propõe como neutro e gera um discurso opressor. Grupos de opressão usam da linguagem, que se esconde por trás da ciência, para dominar e oprimir. Usam a religião (religiões) para explorar, colocando Deus a serviço de seus interesses.  
    Desse processo, emerge um modelo de educação que sufoca o aluno, em vez de dar-lhe oportunidade para a realização pessoal. Porque esse discurso é expressão da ciência e da lógica, cabe apenas ao aluno o papel de decorar, aprender, no mais mesquinho sentido que esse termo pode ter (apreender). Fixar o que outro disse, porque é verdade, que a autoridade do mestre certifica. Constrange esse pobre oprimido a reproduzir, no processo de avaliação, o que é correto, o que é belo, já de todo sempre estabelecido como tal, e, portanto, indiscutível, porque já consagrado. 
   Um professor pode abafar com afeto o crescimento do aluno. A mão que afaga a cabeça pode ser pesada demais a ponto de não permitir o crescimento, a rebeldia, o confronto, o face-a-face. Esse discurso deve ser relativizado de tal forma que se estabeleça na educação o processo da eterna busca e não da decoreba de formulações teóricas “corretas e científicas”. 
   Em nome dessa absoluta relativização do discurso, crio este espaço. Relativização tão absoluta, que se admite a si mesma como relativa, concedendo espaço até mesmo ao discurso absoluto, pois, se tudo é relativo, o próprio discurso de que tudo é relativo também o é, concedendo espaço ao que é absolutamente indiscutível.

* Este artigo foi apresentado originalmente no VIII CELSUL - CÍRCULO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO SUL - realizado na UFRGS - em Porto Alegre, de 29 a 31 de outubro de 2008 e publicado nos anais do mesmo congresso.



AS RELAÇÕES SUJEITO–PREDICADO–OBJETO NA VOZ MÉDIA
Relations between subject, predicate and object  in the Greek medium voice,
Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara, e  Profª. MSc. Rossana Dutra Tasso

Resumo. O objetivo deste trabalho é, ao mesmo tempo, analisar as relações enunciativas entre sujeito, predicado e objeto na voz média grega e Demonstrar a presença dessa voz na língua portuguesa. Não tem, a voz média, Um correspondente formal em nossa língua, como, de modo geral, não o tem Nas línguas modernas. É expressa perifrasticamente, mais comumente com um Verbo na voz ativa e um pronome reflexivo. Em português, “curar a doença” e “curar-se da doença” seriam exemplos respectivamente da voz ativa e da voz média. Na voz média, o processo verbal tem efeito sobre o sujeito, porém vai além da reflexiva portuguesa. O que caracteriza o médio é o fato de ele definir o sujeito como interior ao processo, junto com o objeto.
Palavras-chave: voz média; voz ativa; sujeito; enunciação.  

Abstract. The goal of this assignment is, at the same time, to analyze the Enunciatively relations between subject, predicate and object  in the Greek medium voice, and to demonstrate its presence in the Portuguese language. The medium voice does not have a formal correspondent in our language, just like, in a general way, in any modern language. It is periphrastically expressed, more commonly with an active voice verb and a reflexive pronoun. In Portuguese, “to heal from the sickness” and to “to heal oneself from the sickness” would be respectively examples of both active and medium voice. In the medium voice, the verbal process has effect over the subject; however it goes beyond the reflexive from the Portuguese language. What characterizes the medium voice is the fact that it defines the subject as a being inside the process, together with the object.

1.Introdução
         Poucos são os estudiosos da linguagem hoje que se dedicam ao estudo da voz média. Mesmo os que se debruçam sobre a gramática da língua grega clássica, quando abordam O tema, geralmente permanecem no nível morfológico-sintático. Porém, depois que os filósofos e, de modo especial, os psicanalistas dedicaram muitos estudos ao assunto, passa-se a dar-lhe maior importância.
         Este estudo tem por finalidade abordar as elações sujeito–predicado–objeto a partir das relações sintáticas de voz média. Para tanto, julgamos necessário retomar os conceitos fundamentais aqui implicados, bem como, pelo menos de modo superficial, as bases filosóficas que fundamentam as concepções inerentes a este tema.
2. As origens da voz média
         As vozes, ativa e passiva, sob o nome de ação e paixão, já  ao mencionadas no Órganon de Aristóteles, no livro das Categorias (Kathgori/ai), azendo parte as dez categorias fundamentais propostas pelo filósofo clássico – assim discriminadas, em português e, nos parênteses, em grego e latim, respectivamente: substância (οσία, substantia), quantidade (ποσόν, quantitas), qualidade (ποιόν, qualitas), relação (πρός τι, relatio), lugar (τοποs, ubi), tempo (ποτέ, quando), estado (κεσθαι, situs), hábito (χειν, habere), ação (ποιεν, actio) e paixão (πάσχειν, passio). Algumas vezes, essas categorias são também chamadas de classes.
         O nosso termo ação provém do verbo latino ago (ago, egi, actum, agere), que significa conduzir, levar, coagir, fazer, agir, etc. Do tempo supino actum, originou-se o termo ato e seu correlato ação. Daí surge a relação ativa entre o verbo e o sujeito. Aparece a manifestação e o conceito de sujeito com dupla significação: o sujeito sintático, regendo o predicado, e o sujeito empírico, agindo sobre o mundo e sobre o outro. Nessa voz, o sujeito empírico assume a consciência de sua ação sobre o mundo.
         O termo passivo/a provém do verbo  atino patior (patior, passus sum, pati), que significa sofrer, suportar, tolerar,  admitir. Desse verbo originaram-se os termos paixão e passivo. Dele deriva-se a concepção de voz passiva, em que o sujeito suporta, sofre a ação verbal. Por outro lado, nesta voz aparece a manifestação da ação do mundo ou do outro sobre o sujeito sintático: aparece a consciência da ação do mundo ou do outro sobre o indivíduo, sujeito empírico.
         Essa voz, a passiva, no entanto, tem surgimento posterior na maioria das línguas. Em se tratando das línguas do Oriente, essa voz somente surgiu após contatos mais efetivos com as línguas ocidentais, como se pode constatar pela citação abaixo:
Curiosamente, a voz passiva é tardia. Se comparamos com o caso De línguas como o chinês, vemos que a voz passiva é inexistente e só foi Adotada – muito tardiamente, digamos, nos sécs. XVIII e XIX – por contatos com o Ocidente (SPROVIERO, 1997, p.2).

         No processo de recuperação do conceito de voz média, há estudiosos que afirmam hoje que, no surgimento da linguagem humana, ela foi a voz original (que dá origem às demais), e fundamentam seus postulados nos estudos e análises do surgimento da linguagem na criança, realizados pela Psicologia  Experimental. A criança inicia sua inserção no uso da linguagem não se distinguindo do mundo que a cerca: nem dos objetos, nem dos outros seres humanos. A voz característica dessa fase da aquisição da linguagem seria a voz média.
         Essa voz era a fundamental nos primórdios do surgimento da linguagem no homem. Na infância da humanidade, o homem não tinha ainda consciência de si e do universo como ontologicamente distintos. Nesse sentido, sobre a voz média, Sproviero afirma:
E o ponto fundamental é a tese desenvolvida pelo pensador alemão Schöfer. Ele é de opinião de que houve uma fase em que havia somente o médio: ativo e passivo seriam análises do médio. O médio indicaria portanto  a fase da consciência não destacada do mundo, isto é, o homem e o mundo não se separavam, integravam o mesmo todo e a linguagem exprimia essa relação integral (Idem, ibidem, 1997, p.3).

         O termo análise provém da palavra grega lu/siv, cujo significado é solução, dissolução, ação de dissolver, desatar etc. Essa etimologia presta-se para o entendimento do termo análise, empregado por Sproviero na citação acima. Assim, o termo médio ter-se-ia dissolvido, analisado em ativo, passivo e médio no sânscrito e no Grego clássico.
         Dessa forma, o conceito de voz média está relacionado com a própria evolução do homem e ligado à própria formação da consciência do indivíduo acerca de si próprio, do mundo que o cerca e de suas relações intersubjetivas de alteridade.
         Acontece que o desenvolvimento do latim e do sânscrito, por caminhos semelhantes, motivou o apagamento da marca morfológico-sintática de voz média na maioria das línguas naturais em uso atualmente. O sânscrito, por motivos religiosos, e o latim, por motivos político-religiosos, fizeram dessas línguas, línguas artificiais. A Partir da gramática grega de Dionísio (Dionu/siov Qra/c), as gramáticas escritas Não passaram a não corresponder a línguas naturais.
         As gramáticas não eram descritivas. A primeira gramática do sânscrito, escrita pelo religioso indiano Panini, não refletia a língua realmente falada pelos usuários do idioma: visava a efeitos sobrenaturais do ritual sagrado e buscava aproximar-se da língua primitiva em que os textos do culto haviam sido redigidos. Essa gramática criou uma língua que passou a ser usada nos templos de toda a Índia por muitos séculos. Tal formalização gramatical serviu  e base para a criação das gramáticas escolares desde então usadas nas escolas como instrumento de ensino.
         O latim medieval se desenvolveu de modo semelhante. Também ele não foi uma língua falada. Os gramáticos romanos tomaram uma língua artificial criada por influência dos gramáticos gregos clássicos, o latim clássico, promoveram algumas mudanças que o momento exigia, impuseram normas que as fixassem, dogmatizaram seu uso e criaram um vocabulário filosófico. Então, essa língua consagrou-se (do verbo latino sacrare, por sua vez ligado ao substantivo sacer, sacerdos, que significa sacerdote) como veículo de cultura. Assim, todo o texto que não seguisse as normas da gramática, tornada oficial dos estados, não era considerado científico.
         As gramáticas escolares foram elaboradas a partir dessas normas e impostas aos alunos que quisessem utilizar a norma culta. Não eram gramáticas descritivas de línguas naturais. É lógico que essa imposição contribuiu para originar as novas línguas naturais, não por seguirem esses parâmetros impostos, mas exatamente por se fundarem em princípios de outra natureza, a das relações sociais naturais.
         A gramática clássica grega, assim como a temos hoje, reduz a voz média ou a uma simples reflexiva ou, na melhor das hipóteses, apresenta-a como expressão de uma ação que o sujeito pratica particularmente interessado em seu efeito, ou em seu próprio interesse. Veja-se o seguinte exemplo do verbo  tomado primeiramente na voz ativa: αρέω (eu tomo). Passado para a voz média, fica: αρέοµαι (eu escolho), isto é, tomo de acordo com meu interesse.
         Nesse emprego, a voz média perdeu sua dimensão primeira, isto é, a de ser uma marca primordial de indiferenciação do indivíduo com o universo e com a própria divindade que caracterizava os tempos míticos. Aparece apenas como manifestando uma ação verbal em que o sujeito age de acordo com seus próprios interesses.
         Há, também, ainda hoje, forte preocupação com a mudança,  com o que se chama de “corrupção” ou “perdas” de dimensões da língua. As citações acima foram iradas de uma entrevista feita a Mário Bruno  Sproviero, professor de filosofia da USP, sobre um artigo publicado por ele a respeito da linguagem, em que destacara o desaparecimento morfológico-sintático da voz média nas línguas naturais em uso atualmente. Valemo-nos de afirmativas dele e de seu entrevistador para expressarmos nosso ponto de vista sobre o tema.
         Afirma o entrevistador:

Antes de tratarmos da voz média e para tomar um caso ligado diretamente às transformações do português realmente falado no Brasil de hoje (sobretudo pelo jovem...), ocorre-me que um dos exemplos mais fortes dessa ligação pensamento/linguagem está acontecendo com o atual processo de supressão (fática) do subjuntivo (ou da distinção subjuntivo/indicativo) O que se ouve é: "Se você quer que eu vou, eu vou...". Parece-me que esta supressão (gramatical) corresponde a uma supressão de distinção de categorias mentais: a abolição da distinção entre o real em ato e o simplesmente possível ou desejado... (Idem,  ibidem, 1997, p.1)

         Em sua resposta, o entrevistado concorda com o posicionamento do entrevistador, dizendo:

Exatamente. O exemplo é muito bom. E mostra como um empobrecimento de linguagem corresponde a um estreitamento de horizontes mentais. Isto é mais nítido ainda no alemão, cujo subjuntivo é ainda mais detalhado do que o nosso (quanto a modos de possibilidade, desejo etc.) (Idem, ibidem, p.1).

         Esses posicionamentos em relação ao uso linguístico estão intimamente relacionados com os de Dionísio Trácio, no século II a. C., em relação à língua grega. Vivendo em Alexandria, portanto  ora da Grécia, e num período em que, por força do imperialismo, não mais do estado grego, mas ainda da cultura helênica, não mais no período helênico, mas no período helenístico, o humanista da Trácia elaborou sua gramática.
         Ocorre que no período helênico, cujo apogeu se dá no século V a. C., os literatos, mormente os poetas, empregavam uma  linguagem altamente rebuscada na produção de suas obras de indiscutível qualidade literária.
         Dionísio, vendo a produção literária de seu tempo, o período helenístico, em que a língua e cultura grega se disseminavam por todos os países do Mediterrâneo, encontrando o emprego da língua grega pelos seus contemporâneos arvorados em homens de cultura, ficou extremamente preocupado com as diferenças entre os textos em grego produzidos pelos coetâneos dele e os das obras clássicas da Grécia, produzidos no ápice da cultura dessa nação. Isso o levou a redigir sua gramática, que nada mais é do que um conjunto de regras de escrever, orientadas pelos textos da literatura grega (rotulada hoje de clássica) produzidos no período helênico. Ora, nenhum grego empregava essa linguagem para a comunicação diária, muito menos em seu uso coloquial.
         No entanto, a gramática de Dionísio serviu de base para a elaboração das gramáticas  latinas e de todas as gramáticas prescritivas que e elaboraram depois de então. Esta breve reflexão servirá de base para nossos posicionamentos neste artigo.
         Discordando do ponto de vista de Sproviero e de seu entrevistador, no que se refere à mudança linguística, e fundados na concepção de que gramáticas prescritivas são calcadas em modelos políticos autoritários, fazemos os comentários que se seguem.
         As línguas não se regem por normas impostas por quem quer que seja. As regras que orientam suas mudanças são as mesmas que regem as transformações sociais. E nessas transformações linguísticas não há enriquecimento, empobrecimento ou corrupção: surgem termos que têm orientação filosófico-sociológica de outra ordem e natureza, ora ligadas à moral e à religião, ora a interesses menos nobres. E o sujeito passa a conceber a realidade de outra maneira. São diferentes estratégias discursivas eleitas pelos falantes para se manifestarem em seu idioma que se revestem de outra roupagem para expressar um olhar próprio, ao mesmo tempo igual e novo, sobre si mesmos e a realidade que os cerca. Não é nada melhor nem pior: é diferente.
         Na mesma direção em relação à mudança, Sproviero comenta ainda o apagamento da marca formal do subjuntivo e, a seguir, da voz média:

Da mesma maneira que, como você dizia, nós estamos, hoje, numa fase de perda do subjuntivo e, com ele, da distinção entre realidade e possibilidade; no caso do grego, as gramáticas foram escritas numa época em que a voz média já não era mais empregada e ela foi objeto de uma teorização que não compreendia o alcance e o sentido dessa voz (Idem, ibidem, p. 3).

         Em nosso ponto de vista, não ouve perda nenhuma na ausência a marca de subjuntivo. Não podemos concordar com esse modo de ver. Fato de não empregar uma marca linguística para distinguir realidade e possibilidade não significa que os usuários da língua hoje não a percebam e não sejam capazes de manifestá-la, quer oralmente quer em textos. Trata-se do que concebemos aqui como diferença de estratégia linguística sem determinação qualitativa de melhor ou pior.
         Voltando à voz média, seu uso vai desaparecendo, historicamente, entre o século IX a. C., período homérico, auge do seu uso e início do declínio; e o século II a. C., período do gramático Dionísio já citado anteriormente, em que seu emprego se reduz ao que aparece na gramática grega também já mencionado.
         O período homérico é pós-guerra de Tróia, que ocorreu no século II a. C., portanto, início do imperialismo grego. Até então, desenvolviam-se as pequenas comunidades das cidades-estado, em que o indivíduo era apenas um cidadão, não se diferenciando dos demais.

 O médio é muito mais a consciência da comunidade, uma comunidade da qual o sujeito não se distingue; numa sociedade complexa, a forma média vai se extinguindo numa estrutura cada vez mais complexa e tendendo ao Império (Idem, ibidem, p. 5).

         Desse ponto histórico em diante, cada vez mais o indivíduo passou a pertencer menos à comunidade e mais ao universo, ao império:
O que foi a filosofia, senão um esforço constante para consumar a ponte homem-mundo. Tanto é assim que sempre encontramos uma dificuldade de distinguir homem-mundo e, na dimensão epistemológica, a distinção sujeito/objeto, não excluímos do objeto o próprio eu do sujeito, que está presente em todos os atos do conhecimento: eu me conheço ao conhecer... Já o eu, enquanto sujeito ontológico, se distingue do mundo...(Idem, ibidem, p. 5).

         A partir do desaparecimento desse elo homem–mundo expresso por marcas linguísticas, o ser humano, com muitos pensadores, buscou essa ponte. É o caso de Kant em Crítica da Razão Prática. Já  Sidarta Gautama, Buda, no século VI a..C., buscavam a ligação entre o mundo mítico e a nova realidade.
         Essa marca de relação sujeito–objeto na ação, segundo algumas correntes da psicologia, desapareceu como uma forma fixa, morfológica, na linguagem, mas permanece no inconsciente e se manifesta na enunciação.
3. Os estudos de Benvensite sobre a voz média
         A contribuição dos estudos enunciativos acerca da voz medial vem através de Émile Benveniste. Em Problemas de Linguística Geral, tomo I, há um capítulo intitulado Ativo e médio no verbo, datado de 1950, no qual o autor examina a particularidade da distinção entre voz ativa e voz medial nas línguas indo-europeias, valendo-se do conceito de diátese:

Toda forma verbal finita pertence necessariamente a uma ou outra diátese, e mesmo certas formas nominais do verbo (infinitos, particípios) igualmente se submetem. Equivale a dizer que tempo, modo, pessoa, número têm uma expressão diferente no ativo e no médio (BENVENISTE, 1976, p.184).

         O conceito de diátese não aparece explicitamente definido por Benveniste. No entanto, é possível inferir, por aproximação ao campo a Medicina, que o termo diátese é empregado para referir-se a uma predisposição, uma característica imanente dos verbos, que os faz selecionar argumentos de tal forma que, no caso específico da voz média, veicule-se a informação de que o agente verbal efetua algo se afetando direta e concomitantemente. Assim, tem-se como exemplo nascer, verbo cujo significado vai além do espectro ativo: nascer é, para o sujeito, passar a integrar o mundo e interagir com ele; ainda que, em uma primeira instância, ele não pratique a ação ou controle-a, nascer é uma ação que afeta o sujeito em sua relação com a realidade, no dar-se conta da própria existência.
         Como se pode observar, ao tomar como exemplo o verbo nascer, destaca-se o caráter filosófico na re-ligação do homem com o mundo. A categoria “voz” é “a diátese fundamental do sujeito no verbo”, conforme Benveniste. O homem transforma, modifica o mundo no mesmo instante em que transforma a si próprio: eis o princípio intrínseco à compreensão da voz média. “O homem cumpre algo que se cumpre nele” (idem, ibidem, p.188).
         Em seu estudo, Benveniste dedica-se a extinguir as relações entre sujeito e processo na voz média por oposição à voz ativa. Desse modo, o linguista e filósofo ressalta que, na voz ativa, os verbos marcam processos que se efetuam a partir do sujeito e fora dele, como em soprar. Tendência distinta se marca na voz média, uma vez que os verbos apontam a processos dos quais o sujeito é a sede e fica, portanto, no interior do processo. Será a transitividade verbal o elemento indispensável à conversão do médio ao ativo.
         A voz passiva é compreendida por Benveniste como uma transformação histórica da voz média. O sujeito que primeiramente era visto como atuando no mundo pela intenção de atuar sobre si próprio passa, na voz passiva, a ser atuado pelo mundo. O agente converte-se em paciente.
         Uma diferenciação entre duas modalidades de diátese é examinada ao final de Ativo e médio no verbo. Considerando-se a posição ocupada pelo sujeito quanto ao processo expresso pelo verbo, haveria para a voz ativa uma noção de diátese externa, enquanto que para a voz média haveria uma diátese interna. Por conseguinte, a diátese soma-se, na proposta de Benveniste, às categorias de pessoa e de número para delimitar o que chama de “campo posicional do sujeito”, isto é, o modo como o sujeito situa-se em relação ao processo verbal.
         A contribuição deste trabalho de Benveniste está, parece-nos, no fato de que são apresentadas evidências linguísticas para a compreensão da voz média, ainda que muitos gramáticos tenham-na associado a uma mera marca do interesse do sujeito quanto ao processo.
         Suportada pela língua, a marca medial supostamente tem seu valor na oposição à voz ativa – oposição esta que fragiliza o princípio de que a voz média se explica pela intervenção de fatores extralinguísticos. O homem está na língua e, assim sendo, o estudo da voz média é mais uma comprovação disso.
4. A presença da voz média na língua portuguesa: a relação sujeito–
predicado–objeto

         Pesquisas recentes propõem-se a discutir a repercussão da voz média na língua portuguesa em seu estado atual. Em artigo de 2002, Camacho objetiva distinguir construções médias de construções reflexivo-recíprocas, buscando “evidências formais, semânticas e tipológicas”. Para tanto, vale-se das considerações de Câmara Jr. (1972),

para quem o medial corresponde morfossintaticamente a uma construção em que à forma do verbo na voz ativa se acrescenta um pronome adverbal átono, referente à pessoa do sujeito, e a função semântica que veicula é a de uma integração no estado de coisas que dele parte (CAMACHO, 2002, p. 2).

         Camacho afirma que há, no português, itens lexicais determinados, todos eles verbos inerentemente pronominais, para sinalizar a voz média. A partir disso, declara que “a voz média é uma categoria linguística potencial, capaz de manifestar-se gramaticalmente”. Mais adiante, ressalta que

O português dispõe de um elenco considerável de verbos intransitivos em que iniciador e entidade afetada convergem no  sujeito, como desaparecer, evoluir etc. por um lado, e cair, morrer etc. por outro. Mesmo assim, esses predicados não se enquadram no sistema de diátese medial, não só por serem destituídos de marcação formal, mas também por não apresentarem contraparte transitiva, que permita algum tipo de seleção. (idem, ibidem, p.5).[grifos nossos].

         Destaquemos aqui nossa discordância em relação à posição assumida por Camacho nesta última citação. Se, como já postulado por Benveniste, a voz média deve ser compreendida como o processo em que o agente efetue algo se afetando, a marca formal torna-se secundária, ou até mesmo redundante. Para fins de classificação, relevante deve ser a presença da diátese interna no processo desencadeado pelo verbo. A voz média, portanto, é perceptível inclusive em formas verbais desprovidas de marcação pronominal. O critério de transitividade verbal somente se justifica na contraposição à voz ativa, já que o signo linguístico é configurado pelas oposições que ele desencadeia no interior do sistema.
         Além disso, os pronomes átonos são os marcadores tanto da voz média quanto da voz reflexiva, o que obscurece a distinção entre uma e outra simplesmente pelo critério morfossintático. O fator situacional, como determinante do uso que o sujeito faz do sistema (ou melhor, do aparelho formal da enunciação, trazendo Benveniste), não pode ser descartado.
         Parece-nos, portanto, que o olhar conferido pelos estudos enunciativos à linguagem impede-nos de cercar a compreensão da voz media à marcação clítica, ou mesmo à transitividade verbal. É inegável que no enfoque medial há traços da voz reflexiva, tal como a concebemos hoje, semântica e sintaticamente, inclusive.
         Entretanto, insistimos que os pressupostos benvenisteanos, seja quanto aos planos semiótico e semântico – que marcam a intervenção do homem na língua –, seja quanto à descrição do conceito de diátese –, em especial a interna, que situa o sujeito no interior do processo verbal, como agente diretamente interessado e afetado –, possibilitam a percepção da voz média sob um ponto de vista abrangente e mais próximo à sua noção primeira, aquela anterior à gramática de Dionísio.
         A Gramática da Língua Portuguesa (2003), de Maria Helena Mira Mateus et al., reserva algumas páginas ao estudo da voz média. No capítulo A família das construções inacusativas, há uma seção intitulada Construções médias,. após os exemplos “(a) A tua letra lê-se  bem”, “(b) Esse tipo de tecido lava-se facilmente” e “(c) Os trabalhos bons corrigem-se com mais prazer”, as construções médias são assim descritas:
Estas construções partilham propriedades que caracterizam a variante inacusativa dos verbos de alternância causativa e as passivas sintácticas e de -se. Com efeito,  os verbos que nelas ocorrem são verbos transitivos, que seleccionam um argumento externo e um argumento interno directo, mas nestas construções apenas ocorre o argumento nominal com o papel temático interno[...] (MIRA MATEUS et al., 2003, p. 536).

         Conforme se percebe, as considerações de Mira Mateus et al. Retornam à marcação morfossintática como critério obrigatório para a caracterização de uma construção medial. O princípio de que há um argumento nominal com papel temático interno ao processo desencadeado pela forma verbal medial reaparece, mas não se fazem notar na definição acima exposta nem o interesse do sujeito no processo de que é agente (um tecido não teria a intenção de lavar-se a si próprio, por exemplo), nem mesmo a indissociabilidade sujeito/mundo, principal marca da voz média das línguas naturais da Antiguidade.
         Ao final da referida seção, os autores atentam para o fato de que “alguns verbos aceitam a construção média sem exigirem morfologia média explícita através do clítico –se” (Idem,ibidem, p. 538). Citam, logo após,os seguintes exemplos para uma “morfologia média abstracta”: “(a) Estas calças vestem bem”,“(b) Esta tinta seca rapidamente” e “(c) Este pavio queima mal”. Mais uma vez comprova-se que a definição de voz média, tal como a estamos pensando neste artigo, não é contemplada pelos estudos desses autores. Realmente, vimos insistindo na proposição de que a marca morfossintática é dispensável à caracterização da voz média, uma vez que a particularidade medial está no significado do processo desencadeado por alguns verbos e na diátese interna própria deles. Porém, não nos parece coerente,  pelo menos segundo entendemos, considerar que em um exemplo como “Este pavio queima mal” se observa um interesse do sujeito no processo, muito menos sua re-ligação com o mundo ao se deixar afetar pelo processo do qual se põe como agente.
         Voltando à nossa posição inicial, as línguas, desde as antigas, mantêm algumas formas que marcam a voz média, preservando laços dessa relação sujeito-mundo.      Exemplo claro e rico dessa voz havia já no latim, nas formas dos verbos depoentes. O interessante é que muitos desses verbos chegaram ao português e fazem-se presentes ainda, embora nosso idioma não tenha, para isso, uma marca morfológica. Vejamos alguns exemplos.
         Verbo depoente é aquele que tem uma forma passiva e significado ativo. Um dos mais usados é loquor, falar. Sempre que falo, falo também para mim mesmo. Ao mesmo tempo em que falo para o outro, sou também destinatário da minha própria fala.
         Outro verbo depoente é patior, sofrer, padecer. Há uma profunda dimensão de relação sujeito-verbo-objeto expressa por esse verbo, pois a  ação de sofrer recai sempre sobre o sujeito que sofre. E sofrer não é sempre sinônimo de padecer, embora essa dimensão sempre acompanhe o processo em sua profundidade. Sofrer transformação pode conter muito de positivo, mas é sempre desalojar-se. Há uma ideia de perda também, portanto.
         O verbo patior liga-se também à ideia de paixão através do pretérito perfeito (passus sum). Daí provém o adjetivo passional que evoca duplicidade de apego e dor. Além disso, traz uma dimensão relacional entre sujeito, predicado e duplo objeto, enquanto o sujeito, quando sofre pela dor alheia, tem o outro como objeto indireto (quem sofre, sofre por alguém) e a si mesmo como objeto reflexivo do próprio sofrer, o que faz parte da dimensão depoente do verbo e que na tem marca morfológica na língua portuguesa.
         Há certos verbos em que se pode perceber melhor a presença da voz média, mesmo não havendo uma marca morfológica para expressá-la. Etimologicamente, educar forma-se do verbo latino duco (duco, duxi, ductum, ducere), que significa conduzir, precedido da preposição ex, que significa para fora. Essa preposição, em forma prefixal, se junta à forma verbal para que o novo verbo perca seu sentido físico e assuma um outro, metafórico. No entanto, mantém o sentido físico de estar junto, preso a si, de tal forma que só é possível educar, educando-se. Observe-se a presença de sujeito, verbo e duplo objeto: o educando e o próprio educador estão implicados no mesmo processo, o que compreendemos sob a ótica do conceito de diátese.
         Há nessa concepção de educação toda uma riqueza a explorar, que cabe muito mais ao pedagogo e menos ao linguista, no que tange ao sentido desse movimento para fora. Porém, dele também deve dar conta o estudioso da linguagem, uma vez que está na posição daquele que revela o desvela o processo encoberto nos meandros da linguagem, meio em que educador e educando simultaneamente se ensinam, pois caminham juntos.
         Na metáfora platônica da caverna, tateiam educando e educador nas trevas, à busca da luz que nunca é completa, pois o ser humano está em constante fazer-se e descobrir-se, descobrindo-se no outro e como outro de si mesmo, como objeto da própria investigação.
         Meditari é um verbo de forma morfológica passiva, mas com dimensão média. Não se trata da forma ativa meditare, que já contém uma dimensão média, mas a passiva meditari manifesta uma relação medial mais intensa, pois a voz média não está penas no meio entre a passiva e a ativa, mas está no meio entre o sujeito e o mundo. A predicação de meditari é meditar-se a si mesmo enquanto inserido no mundo.
         Estas formas de manifestação  a voz média não permanecem exclusivas à linguagem filosófica, nem são características apenas das línguas clássicas. Pelo contrário, estão presentes na linguagem de  todo dia, em muitos tipos de expressões, como também fazem parte dos textos literários.
         Um exemplo claro do português do Brasil, na linguagem  coloquial, é o dativo ético, em que aparecem expressões como Me morreu o gato, Agora me acontece mais essa ou Não é que ela me foi embora? Essas expressões mostram claramente a presença da voz média em nosso idioma. A diátese verbal, na mesma medida em que atinge o objeto, afeta concomitantemente o sujeito.
         Em Me morreu o  gato, como nos demais exemplos, está clara a afetação do sujeito pela relação do predicado com o objeto. Não são, porém, apenas marcas negativas de perda. Podem ocorrer situações em que o sujeito recebe, da relação verbo objeto, uma afetação de carga positiva, como é o caso do exemplo a seguir: Não é que ele me ganha o prêmio?!
         Como afirmamos anteriormente, em português, podem-se encontrar exemplos da voz  média também  nos textos  literários, como acontece no poema abaixo, de Cecília Meireles.

Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
Sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
Não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– mais nada. (Cecília Meireles)

         Nos fragmentos “não sinto gozo nem tormento.(...) Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, (...) Não sei se fico ou passo. (...) E um dia sei que estarei mudo: – mais nada”, o poeta vive essa integração com o universo de que faz parte. Em sinto... gozo estão presente simultaneamente o sujeito que sente e goza integrado no mundo em que se realiza a ação verbal. Em edifico, permaneço, desfaço e fico, passo e estarei, ao mesmo tempo em que edifico, me edifico; em que faço, me faço; em que fico, fico eu mesmo no mundo a que pertenço indissociavelmente; e estarei, com sua dimensão  presente e futura, situando o sujeito no universo com o substantivo mundo.

5. Considerações finais
         Pensar a voz média é estabelecer outros padrões para a compreensão da relação sujeito–predicado–objeto. Tentamos ressaltar neste trabalho que considerar a perspectiva medial na linguagem vai além de situar o sujeito no interior do processo verbal de que é agente, ou simplesmente avaliar seu interesse quanto ao resultado do processo. Sujeito e objeto tornam-se indissociáveis na voz média. Por consequência, através dessa categoria, pontua-se a re-ligação do homem com o mundo, do homem com a realidade que dele não se pode separar.          O homem, igual à linguagem,  só em razão de existir pelo princípio da relação.
         A diátese interna manifesta a própria essência epistemológica do ser humano que não se pode distanciar do mundo que observa, descreve e analisa, pois é  indissociável dele. Essa separação é apenas ontológica: olhar para o homem sujeito dissociado do universo, objeto da observação, é apenas um processo didático. Homem, universo e linguagem fazem arte de um todo que só pode ser concebido numa visão apodítica universal. Estes estudos são apenas parciais, exigindo  de nós, pesquisadores, um aprofundamento teórico e uma observação mais aguçada do emprego da língua.
6. Referências e Citações
BENVENISTE, Émile. Ativo e médio no verbo. In: Problemas de Linguística Geral. São Paulo: Ed. Nacional, Ed. Da Universidade de São Paulo, 1976. Tomo I, p. 183-189.
CAMACHO, Roberto Gomes. Em defesa da categoria de voz média no português. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010244502003000100004&l ng=en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 10 ago. 2008.
MEIRELES, Cecília. Motivo. Disponível em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/ceciliameireles01.html>Acesso em: 11 set. 2008.
MIRA MATEUS, Maria Helena et. al. Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.

SPROVIERO, Mário Bruno. Linguagem e consciência: a voz média. Disponível em:<http://www.hottopos.com/mirand3/linguage.htm.>Acesso em: 10 ago. 2008.

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