quarta-feira, 22 de abril de 2015

O INUSITADO CEMITÉRIO JUDEU DA CIDADE DE PRAGA – MARCA DA PRESENÇA JUDAICA NO LESTE DA EUROPA

No centro de Praga
"Sinto um certo embaraço ao começar a escrever como se pusesse minha alma a nu, por ordem — não, Deus do céu!, digamos por sugestão — de um judeu alemão (ou austríaco, mas dá no mesmo). Quem sou? Talvez seja mais útil me interrogar sobre minhas paixões do que sobre os fatos da minha vida." (Umberto Eco - O Cemitério de Praga). 

Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
O Cemitério judeu de Praga envolve uma história particular e inusitada. A visão de todas aquelas lápides, sem sepultura, postas umas ao lado das outras, naquele campo santo, causam estranheza. O visitante logo se interroga da razão daquilo. Não se deve esquecer que este cemitério emprestou seu nome à famosa obra de Umberto Eco.
Pensa-se em uma reforma. No resgate de sepulturas de outros locais. O simples olhar pelos arredores não oferece nenhuma resposta. Somente uma investigação histórica traz uma explicação plausível, para aquelas cenas insólitas.
Primeiramente, vou abordar o cemitério atual da capital da República Checa, a maravilhosa Praga, a Paris do Leste, com seus prédios coloridos em oposição ao tom cinza da cidade luz. Depois, farei uma explanação da história que levou à atual situação do cemitério.
Situa-se, o cemitério de Praga, no Josefov, o conhecido bairro judeu da cidade, onde se encontra o mais antigo cemitério judaico do mundo.
No século X, migrantes judeus começaram a se estabelecer na bela cidade do leste. Porém, após o primeiro pogrom, ou seja, o primeiro ataque em massa, simultaneamente, a pessoas, casas, negócios e centros religiosos, o povo judeu concentrou-se num único bairro da cidade de Praga, com a evidente intenção de autoproteger-se.
Esse bairro passou a abrigar também o cemitério particular do povo judeu. Como, em curto tempo, o espaço do campo santo esgotou-se, a solução foi remover as lápides, para que uma nova camada de terra encobrisse os antigos túmulos e o espaço ficasse disponível para novas sepulturas.
Assim, sucessivas camadas foram sendo sobrepostas umas às outras de tal forma que o pequeno espaço abriga em torno de doze mil sepultos. Segundo se crê, há doze camadas sobrepostas nesse insólito cemitério. Desse modo, permanecendo todas as lápides na superfície, essas encontram-se quase amontoadas.
Cemitério de Praga

Hoje, para a visita, paga-se uma taxa que inclui também a visita a algumas sinagogas locais. Existe um itinerário prefixado para as visitas, para que, sendo o espaço muito exíguo e muitos os visitantes, seja mais rápida a participação de cada indivíduo e não sejam quase possíveis as fotografias.
Mas, vista a história particular e peculiar do cemitério da capital checa, voltemos a uma recuperação da história do povo judeu, que conduziu à situação das grandes perseguições, cuja culminância foi o holocausto nazista do século passado.
 Os judeus sofreram diversos processos de diáspora (dispersão) por sucessivas vezes, através da história. A primeira diáspora de que se tem notícia, ter-se-ia dado no governo de Nabucodonosor, rei da Babilônia, no ano 587 a. C., em que grandes levas de judeus foram deportados para a Mesopotâmia e escravizados pelos caldeus.
Depois, durante o primeiro período de grande instabilidade do Império Romano, que culminou com o governo de Nero, sob a acusação de rebeldia, o general Vespasiano cercou Jerusalém pelo longo período de dez anos. Depois da morte do imperador Augusto, a famosa “pax augustiana” principia a desgastar-se.
Tibério, o controvertido enteado do imperador, fez um governo cruel e ao mesmo tempo displicente: o imperador afastou-se de Roma, em seu longo exílio na ilha de Capri, de 26 a 37 d. C., por aversão ao cargo e por temor ao assassinato. Estabeleceu seu ministro Sejano como mandante de Roma em seu nome. Esse distanciamento favoreceu as injustiças e a corrupção e colaborou para o enfraquecimento do poder romano sobre as províncias.
Com a posterior desastrosa administração de Calígula, o tendencioso governo do epilético Cláudio e a criminosa administração de Nero, a derrocada parecia próxima. Isso favoreceu a revoltas como a da Judéia. Foram dez anos de cerco cruel, especialmente narrados por Flávio Josefo, historiador judeu-romano dessa época.
Pois, no período final do cerco, nos anos 69 e 70 d. C., foram assassinados nada menos do que quatro imperadores. Primeiramente Nero, a seguir Galba, Otão e Vitélio foram assassinados ou obrigados a suicidar-se, como querem alguns historiadores.
Foi então que o general Vespasiano, apoiado pelas tropas com sede no Egito, seguido por todas as tropas do oriente, deixou seu filho Tito para concluir a destruição de Jerusalém e restabeleceu a ordem no Império, tornando-se o primeiro imperador da dinastia dos Flavianos, encerrando a dinastia das famílias Júlio-Claudianas.
Lápides do cemitério de Praga

Esse restabelecimento da ordem foi a danação das pretensões judaicas de liberdade. Tito tratou a cidade com extremo rigor, destruíu-lhe o templo e todas as residências, bem como as muralhas e dispersou o povo judeu pelo império. Em 135 d. C, durante o império de Adriano, houve nova rebelião judaica. Essa derrota definitiva dos judeus levou o imperador a dispersá-los pelo mundo. Muitíssimos foram levados como escravos pelas tropas romanas e vendidos nos mais diferentes pontos do império. Os demais migraram para onde melhor lhes aprouvesse. Desse modo, praticamente não restaram judeus na palestina.
Nos primeiros séculos da era cristã, ainda com a germânia sob o domínio romano, chegaram os primeiros judeus à região onde hoje se situa a Alemanha. Mesmo antes de se formarem comunidades alemãs, os judeus já formavam um povo nessas regiões, especialmente nas cidades do Reno e do Danúbio. Dedicavam-se ao comércio, ao artesanato, à medicina e ao estudo do Talmude.
A partir do século XI, começaram a surgir comunidades judaicas conhecidas como judiarias, na região da Alemanha. Porém, já a partir dos concílios de Elvira, cidade da Hispania Romana, em 306 d. C., e Arles na Gália, atual França, em 314 d. C., iniciaram-se as edições de um conjunto de normas disciplinatórias em relação à conduta dos povos cristãos.
Essas normas regulamentavam, de modo mais específico, as relações entre cristãos e não cristãos. Entre os não cristãos, três tipos de cidadãos eram especialmente marcados: os politeístas, que recebiam a classificação de, os judeus e os hereges, ou seja, os que não possuíssem crença divindade ou religião alguma.
A primeira proibição aí estabelecida era o casamento entre cristãos e não cristãos. Quem não obedecesse a essa norma era considerado impuro, portanto, interditado à comunhão, e excluído da salvação eterna.
Acusavam os judeus pela crucificação de Jesus Cristo, embora os próprios evangelhos afirmem que essa fora obra dos romanos. Isso consistia num absurdo de fundo excludente e racista, pois, se, levada às últimas consequências, essa condenação atingiria os apóstolos, não esquecendo que mesmo Cristo era judeu.
Veja-se esta norma absurda do Concílio de Elvira: “Se algum clérigo ou batizado come com judeus, concordou-se que se abstenha da comunhão, para que se emende (ut debeat emendari )” ( Concílio de Elvira , c. 50).
Esse separatismo entre cristãos e judeus se foi agravando de tal maneira que, a partir do século XIV, os judeus começaram a em comunidades isoladas. Já no século XI, o antissemitismo principia a agravar-se na Alemanha, provindo da França, pois o concílio de Clermont (1095), convocado pelo Papa Urbano II, estabelece a primeira cruzada para a libertação da Terra Santa.
O lema das cruzadas consistia no seguinte: Quem matar um judeu obterá perdão de todos os pecados. Assim, quem não queria ou não podia participar das cruzadas, atacava os judeus locais.
Há crônicas judaicas dessa época que relatam massacres nas regiões de Speyer, Worms, Mainz, Trier e Köln. Por toda a Europa, havia um sentimento de inveja relativamente à boa situação financeira dos Judeus. Sucederam-se os pogroms em vários países. Alguns bispos, no entanto, por interesses econômicos, tentaram ajudar os judeus. Alguns judeus, para evitar as perseguições, passaram a receber o batismo. Esses ficaram conhecidos como cristãos novos.
Em 1146, depois da segunda cruzada, diminuíram as perseguições e massacres, mas aumentaram as multas aos membros judeus das comunidades. A seguir, criou-se o sagrado tribunal da inquisição, que condenou milhares de judeus à morte. Instituíram-se os ignominiosos autos de fé, em que os acusados, depois de humilhados e torturados pelas ruas da cidade, eram queimados vivos em locais públicos.
A inquisição não perseguia exclusivamente os judeus, mas eles foram o alvo mais importante de sua ação e tribunais. Acontecia também que, muitos cristãos novos, mesmo convertidos ao cristianismo, acabaram condenados pelos sacros tribunais.
Quando surgiu a peste negra, entre 1348 e 49, foram novamente os judeus acusados de serem os responsáveis por ela. Foram eles também acusados de envenenamento de poços. Por isso, algumas aldeias judaicas foram incendiadas e seus cemitérios destruídos.
Todavia, no século XVI, com o surgimento do luteranismo, houve um afrouxamento nas medidas antissemitas. Assim, no século XVII, alguns abastados judeus portugueses estabeleceram-se em Hamburgo, com alguns poderosos estabelecimentos bancários, cujas filiais se estabeleceram em outros países, até mesmo na América.
Porém, a grande maioria dos judeus do leste europeu ainda vivia em guetos, regidos pelas leis religiosas dos rabinos. Porém, eles tinham acesso à escola e, especialmente, à alfabetização, o que lhes proporcionava maior desenvolvimento econômico em relação a outros povos. Muitos judeus dessa região falavam ídiche, um dialeto formado do alemão, do hebraico e de línguas eslavas.
Com a ascensão da burguesia, houve a possibilidade de emancipação dos judeus, porém sob um alto preço, ou seja, sob a exigência do abandono de sua religião e crenças.
Vieram, então, os racismos, especialmente na Europa. Muitos teóricos estabeleciam critérios para a classificação das raças entre superiores e inferiores. Um dos maiores teóricos da supremacia de certas raças, de modo especial a raça ariana, é o sociólogo francês Joseph Arthur de Gobineau. Outro conceituado racista europeu foi o pensador inglês Houston Stewart Chamberlain, cujo pensamento serviu de suporte para Hitler e Goebels.
Esse racismo europeu teve como consequências as barbaridades praticadas contra o povo judeu durante o segundo grande conflito mundial, que, por demasiadamente conhecido, abstenho-me de descrever no presente texto. Creio que esta breve explanação seja suficiente para se entender a realidade que teve como resultado a construção do inusitado cemitério juddeu da cidade de Paga.



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