quinta-feira, 18 de setembro de 2014

DE PROCEDIMENTOS E ETNIAS

Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
Tinham uma servente doméstica afro-descendente. Vestes e avental impecáveis dia após dia... deveria invariavelmente trocar-se ao entrar na mansão... dependências especiais para ela... sentiam orgulho disso... consideravam-se mesmo generosos por tudo o que faziam por ela... tens um banheiro somente teu... nãos uses, por favor, os demais da casa, dissera-lhe madame...
 O relacionamento era bom-dia, Neide... o cardápio de hoje está aqui... lava os vidros da sala de visitas... e sempre assim... tudo no mais absoluto respeito... podes consumir o que desejares no almoço... não te esqueças de guardar teu prato especial e teus talheres nos teus aposentos... tudo isso é só teu... poucos dão essas regalias aos funcionários... usa sempre as luvas... jamais toques em nada com tuas mãos... A senhora precisa de algo mais.?.. até amanhã... Deus te proteja...
CRISO EUROPEIZADO

Tinham asco daquela africana... não toques nela... diziam à neta que chegava da escola... por quê? Perguntava a pequena... ela está suja? ... não... muito limpa... se não, não entraria aqui... sabes... essa gente... pode ter micróbios... vive em favela... baratas... ratos... formigas... e a menina passou a olhar com asco para Neide...
Não precisas trocar a menina... eu e a mãe dela necessitamos exercitar atitudes de carinho e intimidade para que ela se sinta amada... Ficavam todos muito distantes da criada... não gostavam de intimidades... era ela lá... eles ali... somos generosos... ela até pode levar as sobras. Está até mesmo feliz conosco... somos muito generosos... damos frequentes gorjetas... mas termina aí...
Velório na família da Neide... temos de ir... pegaria muito mal... Entram na capela pobre... muito elegantes... bem cheirosos... Porém, ali o odor acre de tudo agredia as entranhas daquele casal tão sofisticado... havia mesmo um ar desagradável de origem ignota... envolvia tudo... as pessoas... o local... o defunto, então... Foram muito gentis... ofereceram-se para ajudar nas despesas... não... ele é nosso... tantos anos mirrando no leito... sozinho... sem queixas... Ficaram o tempo necessário... foram-se... gente importante tem compromisso inadiável... enfim... livres...
Esses ambientes tétricos, constantemente fechados, utilizados apenas para encontros desagradáveis, não raramente trágicos, abrigam espíritos malignos que infundem nos corpos e nas almas dos participantes um ar sinistro... é como se a própria morte espreitasse a todos, por trás das máscaras fúnebres que se apossam das faces dos participantes desses cerimoniais, à espera da ocasião propícia para o golpe derradeiro e fatal... aliados à pobreza, então, chegam à culminância de sua manifestação funérea... Não há religioso ou mago que possa livrar os vivos das emanações da funesta maldição de Adão...
Lá se iam os patrões... a alma leve pela sensação do dever cumprido... felizes para consigo mesmos em razão da generosidade do próprio gesto... afinal, eram do bem... nada temos com a miséria deles, argumentava a madame para seus próprios botões... são orgulhosos... não aceitaram a ajuda... problema lá deles... ninguém pode dizer que não tentamos... todos lá ouviram... Que família generosa! deve ser a opinião daquele populacho... ninguém mais faz isso hoje...
Em casa... banho... roupa limpa...desinfetante... sabe que isso pega... doenças mal tratadas... No entanto Neide, embora pretinha, é de alma branca... mas há negrice em tudo, não desgruda dela, dizia a madame para o esposo, a mais ninguém ela jamais revelaria isso.... é a própria imagem da ineficiência... se não fosse assim, estaria num gabinete de chefia... replicou o marido... Porém, essas verdades todas não estão na ordem do que se possa dizer... não pega bem... ainda mais nestes tempos em que tudo está constantemente posto à prova...
Porém, à tardinha chegou a Lígia da Universidade na capital... um beijão, um abraço apertado na Neide ao entrar pela porta... carinhos nos cabelos dela... outros repetidos beijos... no topo da escada, a mãe esquivou-se... vai te higienizar... da viagem?... não... dela... mãe... deixa disso...Neide é da casa... da família... mais, é minha amiga e já foi minha confidente... a mãe se doera com última revelação... mas engolira a ofensa em silêncio...
Vem cá, mãe... senta aqui...  que pensas tu lá da faculdade?... grande parte de meus colegas são negros... muito mais do que a Neide...  como o faço com os colegas de qualquer outra origem, convivo com eles com a maior naturalidade... trocamos confidências...  uma até mora comigo de uns tempos para cá... iria deixá-la perder o curso?... Essas intimidades eu não aceito, minha filha... não somos racistas... somos diferentes... a própria natureza nos fez assim...  são eles para lá e nós para cá... só isso... pronto... isso é ser do mal?
IMAGEM DE CRISTO SEGUNDO A PESQUISA

E achas que isso tudo que vocês fazem seja o quê, mamãe...?   amor ao próximo? Aceitação dos diferentes? É desses procedimentos que papai e a família tanto se orgulham? Essa é a justiça social que tanto vocês afirmam defender?
Mas, minha filha...
Vai, mãe, vai para teu oratório, rezar para teu Cristo loiro europeizado, enquanto vou matar saudades da Neide...

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